Retratos da pandemia: conexões - desconexões & reconexões

108 Vera Regina Röhnelt Ramires meninos com o Burro e o outro com a Dragoa. Quando perguntamos o porquê dessas escolhas, geralmente recebemos como resposta: “porque eu gosto dele”. Mas além do gostar da personagem, há algo na escolha que fala sobre si. O dragão, por exemplo, é uma criatura imensa, que aparenta ser poderosa e temível, mas que na verdade não é tudo o que parece, é alguém que cansou da solidão e quer amar e ser amado. O Burro é a própria criança, que se dispersa pelo caminho, se aborrece com a demora e que tem um senso crítico aguçado e uma capacidade de jogar luz nos pontos importantes de um discurso. Mais do que a representação inicial, a personagem é alguém que busca aprovação e uma família, mas também possui inteligência emocional para gerenciar as suas emoções e ajudar os amigos a fazerem o mesmo. Fiona é a princesa nada indefesa, vivendo aprisionada e em solidão, envergonhada de ser feia, mas que em seu percurso descobre ser muito mais do que sua aparência. Por fim, temos o Pinóquio, alguém que é protagonista de sua própria estória, mas que se encontra vulnerável e intruso em outra, não tendo nenhum poder para mudar sua situação. Ao escolher esse personagem, a criança também se mantém à margem, um coadjuvante, como se não pudesse ainda ocupar os holofotes. Quando questionamos sobre suas partes favoritas, foi a mesma menina Pinóquio que disse que gostava da parte em que a princesa se tornava um ogro “ igual ao Shrek ” e assim poderia ficar com ele. Então, introduzimos a dúvida “será que precisamos ser iguais para sermos amados?”. Essa questão é muito pertinente para essas crianças, pois todas integraram uma nova família, de culturas e etnias diferentes das delas. Já no desenho, a menina retratou o casal de ogros , Shrek como um ogro verde, Fiona como uma menina negra como ela própria. Essa identificação foi muito potente para ela, tão tímida, que nesse dia, pela primeira vez, tinha tanto a dizer, e se permitiu dizer. Essa foi a primeira vez que ela sugeriu uma estória (não surpreende que fosse a história de uma menina negra), como se descobrisse que ela também tinha um lugar naquele espaço, um primeiro movimento de deixar de ser o Outro, e se tornar o próprio sujeito que se narra (KILOMBA, 2019). Na hora de contar sobre o desenho, ela não sabia por onde começar ou o que dizer. Foi quando seu colega lhe disse “ Você pode falar, seja natural! ”. Essa foi a aceitação de toda a diferença e até das limitações de cada um deles. Quando se permite ao outro ser como é, também há uma permissão intrínseca a si mesmo. Foi essa permissão que fez possível,

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