Grupalidade em um serviço escola: multiplicidades de um fazer cotidiano
90 Discursos e Rupturas de Fronteiras na Clínica Comum em Saúde é uma prática social que somente em um dos aspectos é indi- vidualista e valoriza as relações médico-paciente […]. Foi no biológico, no somático, no corporal, que antes de tudo investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina uma estratégia biopolítica. (FOUCAULT, 2001, p. 80). No século XX, pela confluência de vários interesses econômi- cos (como os da indústria de medicamentos e equipamentos) há estí- mulos crescentes para as investigações científicas e tecnológicas que ampliam as possibilidades de intervenção da medicina. Seu discurso vai sendo equiparado ao discurso científico e “verdadeiro”, passando a interferir na vida em sociedade, normalizando aspectos da vida. Esse processo é reconhecido, por diversos autores, como a produção de um processo histórico e social, nomeado medicalização da existência, da vida individual e coletiva. (DONNANGELO, 1976; ILLICH, 1975). Clavreul (1983) identificou na prática da medicina o que cha- mou de ordem médica, isto é, um discurso normativo que operaria por meio dos médicos. Por pretender ser uma ciência, a medicina tende- ria a constituir um discurso em que o sujeito da enunciação não tem nenhum lugar, uma vez que a verdade enunciada por ele deve ser in- dependente de quem a enuncia. Devendo-se cumprir ali as exigências de cientificidade, qualquer posição subjetiva, seja do médico, seja do paciente, seria impertinente: “ao mesmo tempo que o doente, como indivíduo, se apaga diante da doença, o médico enquanto pessoa tam- bém se apaga diante das exigências de seu saber” (CLAVREUL, 1983, p. 48). Daí ser possível dizer que não haveria, a rigor, relação “médico- -paciente”, mas “instituição médica-doença”. Isto por que “o médico não recolhe de seu paciente senão o que pode ter lugar no discurso médico”. (CLAVREUL, Ibidem ). A análise de Clavreul baseia-se na teoria de Lacan dos quatro discursos (do Mestre, da Histérica, do Universitário e do Psicanalista), que procurou indicar, neles, modos de relação com o outro, e pólos em relação aos quais todo discurso seria atraído. A seu ver, o discur- so médico estaria mais próximo do discurso do Mestre, mas também teria grande sintonia com o discurso do Universitário. Sem pretender defini-los, dada a sua complexidade, poderíamos dizer que o discurso do Mestre seria aquele que se pretende da verdade e do poder. Clavreul considera que o discurso médico aproxima-se dele no estabelecimento do diagnóstico e do prognóstico, na pesquisa e na sua “posição de con- quista em relação ao desconhecido da doença”. (CLAVREUL, 1983, p. 175). O discurso do Mestre seria aquele que diz o que é.
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