A saúde mental em evidência: narrativas de um caminho utópico

Ana Carolina Einsfeld Mattos Vanessa Ruffatto Gregoviski Organizadoras A SAÚDE MENTAL EM EVIDÊNCIA NARRATIVAS DE UM CAMINHO UTÓPICO casa leiria

Nas palavras de residentes resistentes, este livro se propõe a dialogar sobre o processo formativo dessas profissionais, (re)afirmando tanto uma posição de luta pela permanência de todos os direitos até então conquistados pelos movimentos sociais que atravessam nossa história, quanto uma posição de resistência frente a um cenário nefasto de retrocessos e perda de direitos, inclusive para a categoria profissional "residente".

A SAÚDE MENTAL EM EVIDÊNCIA: NARRATIVAS DE UM CAMINHO UTÓPICO

Coletivo de Residentes em Saúde Mental Ana Carolina Einsfeld Mattos Andréia Aparecida Sates de Lima Camila Martins Sirtoli Carine Capra Ramos Elisiane Zorzi Jéssika Ferreira de Lima Marciane Diel Monique Scapinello Priscila dos Santos Góes Rafaela Pereira Silva Sophia Luar Araújo Patrício Tamires Dartora Vanessa Ruffatto Gregoviski

A SAÚDE MENTAL EM EVIDÊNCIA: NARRATIVAS DE UM CAMINHO UTÓPICO Casa Leiria São Leopoldo / RS 2020 Ana Carolina Einsfeld Mattos Vanessa Ruffatto Gregoviski Organizadoras

A SAÚDE MENTAL EM EVIDÊNCIA: NARRATIVAS DE UM CAMINHO UTÓPICO Ana Carolina Einsfeld Mattos Vanessa Ruffatto Gregoviski Organizadoras Revisão: Ana Carolina Einsfeld Mattos e Vanessa Ruffatto Gregoviski. Edição: Casa Leiria. Arte da capa: Luis Francisco Loureiro. Ilustrações: Ariana Prates, Cauê Araujo Bastos Saldanha, Diogo Macedo, Luis Francisco Loureiro, Marcelo Francisco de Marins Ruck, Paulo Roberto Rodrigues de Oliveira Junior e Rafael dos Santos Barboza. Os textos e imagens são de responsabilidade de seus autores. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Catalogação na publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973

AOS USUÁRIOS DOS SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL Dedicamos esse livro a todxs usuários que estiveram presentes na nossa formação, cada um de vocês deixa em nós a resistência para seguir o caminho utópico. Um agradecimento especial a aqueles e aquelas que contribuíram nesta jornada de luta e aos usuários artistas que representam a sensatez através de sua arte. Seus desenhos e escritas torna vivo esse percurso. Ariana Prates Cacildo Rafael S. da Silva Cauê Araujo Bastos Saldanha Diogo Macedo Luis Francisco Loureiro Marcelo Francisco de Marins Ruck Paulo Roberto Rodrigues de Oliveira Junior Rafael dos Santos Barboza

Tenho muitas lembranças legais, passeios, lanches, eventos, brincadeiras, risadas, dias muito produtivos na minha luta diária, sempre buscando minha reinserção social, familiar, comunitária, autonomia e o resgate a cidadania. No manual das estruturas físicas do CAPS AD ao qual estou inserido, existe um Projeto Terapêutico Singular que diz do desenvolvimento de intervenções que favoreçam a adesão ao tratamento, usando a interrupção ou a redução de danos no uso de álcool e outras drogas, então no CAPS alguns trabalhadores são tão importantes para nós usuários evoluir no nosso tratamento, mas quem realmente ultrapassa a barreira da papelada são as acadêmicas da residência. Obrigado a todas residentes que tive o privilégio de conviver algum tempo, foi um tempo único. Cacildo Rafael S. da Silva

11 PREFÁCIO – UMA NOVA DÉCADA INSTIGA RESISTÊNCIA Rafael Wolski de Oliveira1 Ao adentrarmos em uma nova década, no ano de 2020, um exercício importante se interpõe: avaliarmos a década que passou e projetarmos novos desejos para o futuro. No entanto, no caso do nosso país e da América Latina, esse não é um exercício fácil de se fazer dada a turbulência dos últimos anos em que vimos, em diversos países deste continente, nossas frágeis democracias novamente convalescerem. Talvez, nada novo por aqui. Luta e resistência sempre marcaram nossa história. Tomemos o caso do acesso à educação, ao trabalho justo, à moradia digna, o acesso à água, à alimentação saudável e segura, entre tantas outras demandas que são consideradas como direitos fundamentais para a grande maioria da população. Sempre se apresentaram como pautas imersas em disputas e contradições típicas da relação entre liberalismo econômico e direitos humanos – relação esta característica de nossa era. As conquistas da população nestes campos (ainda insuficientes) foram disputadas duramente, não foram garantidas de forma automática. No marco histórico da saúde pública do Brasil, essas pautas foram marcadas no relatório da VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada no ano de 1986, ano seguinte após o fim da ditadura militar que durou mais de duas décadas por aqui. Ao marcar, sabidamente, que o acesso ou não a estes direitos interferem nos níveis de saúde de uma população, destaca-se duas questões que se interpõem aos trabalhadores dos serviços de saúde: primeira, para trabalhar com saúde é preciso estar atento a estes determinantes e, empenhar-se por eles, junto à população usuária; segunda, fazer saúde pública, de forma equânime e universal é estar imerso em um campo de disputas, lutas e interesses adversos e contraditórios. Nesta virada de década, adentramos no ano em que comemoraremos 42 anos da Conferência de Alma Acta; 34 anos da VIII Conferência 1 Psicólogo, mestre em psicologia social e institucional, professor no curso de graduação em psicologia e do Programa de residência multiprofissional em saúde mental, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

12 Prefácio – Uma nova década instiga resistência Nacional de Saúde Mental; trinta anos do marco legal que institui o Sistema Único de Saúde; 28 anos da Declaração de Caracas e dezenove anos da promulgação da lei da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Nestes anos todos, muitos avanços são percebidos no cotidiano do SUS, como a atenção à saúde se ramificando nos diferentes municípios e a realidade do acesso a populações antes apartadas de quaisquer cuidado. Contudo, percebemos nitidamente o sofrimento do trabalhador, agente responsável pela execução do cuidado em saúde em tempos e situações adversas, bem como vivemos um momento em que a Emenda Constitucional 95/2016, que congela vinte anos de gastos em saúde, recém começa a mostrar seu potencial destrutivo nos muitos serviços que já se apresentavam sucateados pelo subfinanciamento dada a dificuldade de implantação de um teto mínimo de aplicação dos recursos para seu funcionamento, no país o fascismo e intolerância saem do armário e desfilam abertamente nas ruas. A utopia, para os povos latino-americanos, é esse limiar entre luta e resistência ou uma mescla de ambos. Lutar e resistir: lutar para avançar na garantia de direitos e justiça e, ao mesmo tempo, garantir as conquistas ameaçadas, lutando por mantê-las. Neste sentido, este livro condensa a utopia em suas diferentes variáveis. Realizado por um coletivo de residentes do programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, após o percurso de dois anos dedicadas ensino em serviço onde se busca a prática e teoria voltadas a formação para o trabalho no SUS, apresenta a experiência, por vezes árdua, dessa formação e os resultados desse percurso. Com uma carga horária prática e teórica de dedicação exclusiva, com a carga emocional dirigida a esta formação, muitas vezes inseridas em serviços de saúde distantes das boas práticas, tendo em vista a ética profissional como uma questão inegociável e um ideal de um Sistema Único de Saúde que radicalize seus princípios, as autoras demonstram a maturidade e ousadia de quem se lança neste mergulho da residência em saúde e, ao mesmo tempo, revelam a potência deste modelo de formação para o SUS: a qualificação de profissionais onde os princípios do SUS são incorporados na prática e se apresentam articulados entre si e não somente decorados de forma conceitual. Neste sentido, ao percorrer as linhas das produções das residentes, percebemos o lugar de fala de quem viveu esse processo no corpo e o quanto o mesmo fora modificado por ele. Mais uma conquista se evidencia, após tantas lutas pela saúde pública, quando percebemos que são profícuos os resultados de um investimento em formação para o SUS onde os trabalhadores habilitados após a residência, teórico e praticamente, não são tecnocratas e sim, dotados de criticidade, afeto

13 Rafael Wolski de Oliveira e persistência no saber/fazer em saúde. Onde a utopia se faz presente e ativa. Num país que apresenta historicamente tantas desigualdades e onde presenciamos novamente o aumento dos níveis de pobreza, desemprego e pessoas em situação de rua, assim como o aumento de ataques às diferenças, às minorias e à saúde pública. Cada vez mais, o percurso de residência e de trabalho na saúde pública se tornará um desafio permanente, onde a utopia, luta e resistência, deve-se fazer presente. As residentes que incorporam este coletivo e que nos presenteiam com este livro apresentam não um modelo ou um manual. Pode-se dizer que aqui temos escritos que auxiliam na virada desta década, como pistas ou dicas para quem mergulha ou mergulhará no turbilhão que é o trabalho no Sistema Único de Saúde, principalmente no campo da Saúde Mental Coletiva. Uma produção que apresenta desafios importantes desta prática e reconhece os avanços de um país que optou por saúde pública universal e descentralizada, mas do ponto de vista de quem não se contenta com a insuficiência. Enquanto trabalhadores do Sistema Único de Saúde, sabemos a dificuldade de escrevermos sobre nossa prática. Que esse livro sirva também como inspiração para novas produções, tanto deste mesmo coletivo de ex-residentes, agora em novos campos de atuação, mas para tantos outros coletivos, ativos ou por vir, que alimentem a utopia de uma saúde pública por avançar e qualificar.

15 SUMÁRIO 17 Apresentação 21 Introdução – Resistir também é coletivizar processos Ana Carolina Einsfeld Mattos Vanessa Ruffatto Gregoviski 25 Nota conceitual – A emergência de um novo paradigma: saúde é mais que ausência de doença Ana Carolina Einsfeld Mattos Monique Scapinello 31 Capítulo I – Reforma sanitária e o sistema único de saúde (SUS): da luta à construção de um sistema de saúde para todos Monique Scapinello 43 Capítulo II – Modelo de cuidado em saúde mental e a utopia da sua legitimação Ana Carolina Einsfeld Mattos Priscila dos Santos Góes Vanessa Ruffatto Gregoviski 53 Capítulo III – A precarização do trabalho e da saúde Sophia Luar Araújo Patrício Vanessa Ruffatto Gregoviski 65 Capítulo IV – Formação e saúde: residentes multiprofissionais em questão Camila Martins Sirtoli Tamires Dartora 79 Capítulo V – Residência multiprofissional: o papel da instituição formadora no processo do ensino em serviço Jéssika Ferreira de Lima Rafaela Pereira Silva 89 Capítulo VI – Assédio moral e ética no trabalho Elisiane Zorzi Marciane Diel 101 Capítulo VII – Por um controle social que facilite a (des) construção de sentidos Andréia Aparecida Sates de Lima Carine Capra Ramos 111 Conclusão – Seguimos sonhando: resistência e utopia Ana Carolina Einsfeld Mattos Vanessa Ruffatto Gregoviski 115 Posfácio – Sopro de felicidade Sinara Santos Robin 119 As autoras

17 APRESENTAÇÃO O livro A saúde mental em evidência: narrativas de um caminho utópico propõe tornar públicas experiências advindas de um processo formativo. Vem na perspectiva de evidenciar todas as instâncias incumbidas neste modelo de formação, bem como dialogar a saúde mental na forma de uma defesa. A obra apresenta diversas narrativas vivenciais como pano de fundo à resistência de um caminho utópico de cuidado em saúde mental. Existe um ideal atingível? A questão é que a utopia mantém viva a construção de um ideal e, o que conseguimos responder desde já, é que diversas conquistas já foram alcançadas e temos o papel, enquanto atores sociais, de não naturalizar retrocessos às lutas conquistadas e neutralizar avanços. As Residências Integradas Multiprofissionais (RIMS) em área profissional da saúde constituem uma formação especializada. São parte estratégica para o efetivo fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), tendo sido criadas pela Lei Federal nº 11.129, de 30 de junho de 2005. Além disso, apresenta-se como uma possibilidade de enfrentamento dos problemas de saúde individuais e coletivos contemporâneos, caracterizados pela complexidade de sua natureza e produção. As RIMS seguem as orientações da Portaria Interministerial nº 1.077, de 12 de novembro de 2009, e são coordenadas conjuntamente pelo Ministério da Saúde e pelo Ministério da Educação.1 A Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde – CNRMS tem como principais atribuições: avaliar e acreditar os programas de Residência Multiprofissional em Saúde e Residência em Área Profissional da Saúde de acordo com os princípios e diretrizes do SUS e que atendam às necessidades socioepidemiológicas da população brasileira; credenciar os programas de Residência Multiprofissional em Saúde e Residência em Área Profissional da Saúde, bem como as instituições habilitadas para oferecê-lo; registrar certificados de Programas de Residência Multiprofissional em Saúde e Residência em Área Profissional da 1 BRASIL. Resolução CNRMS n. 2, de 13 de abril de 2012. Dispõe sobre as diretrizes gerais para os Programas de Residência Multiprofissional e em Profissional de Saúde. Disponível em: http:// portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=15448-resol-cnrms -n2-13abril-2012&Itemid=30192.

18 Prefácio – Uma Nova Década Instiga Resistência Saúde, de validade nacional, com especificação de categoria e ênfase do programa. O objetivo principal dos programas de residência é formar profissionais especializados que visam o desenvolvimento de ações na lógica do trabalho em equipe de forma interdisciplinar e transdisciplinar. Tais ações estão pautadas no acolhimento, na integralidade, na humanização, na ética e na segurança, assim como na promoção da garantia de direitos. Portanto, as residências pautadas na ênfase da saúde mental desempenham esses objetivos e seguem os termos da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Baseando-se no conhecimento das Políticas Públicas, da Política Nacional de Saúde Mental e das diretrizes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). É importante reconhecer que nós, do coletivo de residentes em saúde mental, quando escolhemos o modelo formativo das residências multiprofissionais para aperfeiçoamento profissional, assumimos antes de tudo uma escolha política de formação. Adotamos a defesa do ético, político e social, assim como o compromisso e (co)responsabilização de enfrentar todas as estruturas que retrocedem e/ou seguem um caminho contrário à luta antimanicomial, à reforma psiquiátrica e ao cuidado humanizado. Para tanto nossa escolha, enquanto profissionais, por entrar em um programa de residência, significa algo além da garantia de uma especialização, evidencia um posicionamento político. Defendemos o Sistema Único de Saúde (SUS), ressaltando todos os princípios que o constituem e a saúde mental dialogada em uma corrente de defesa, na garantia de direitos e justiça social para todxs. A Residência Integrada Multiprofissional em Saúde Mental, vivenciada por nós no seu modo conceitual, concretiza uma imersão. Assim, acrescentamos neste livro algumas percepções inseridas neste contexto de vivências realizadas durante os dois anos de formação. Nós, do coletivo de residentes em saúde mental, autonomeadas resistentes da atual conjuntura de cuidado na saúde mental, propomos essa escrita com base nas nossas experiências cotidianas. Além disso, levantamos algumas percepções frente à defesa da potencialidade de formação profissional caracterizada pelos programas de residência, enfatizando nossa defesa às normativas estabelecidas pela Reforma Psiquiátrica e um grito aos retrocessos que pairam na atualidade. Com a saúde mental dialogada na forma de uma defesa (necessária), nós do coletivo de residentes em saúde mental colocamos nas linhas deste livro uma experiência real, por vezes dolorida, e outros tantos momentos de fortalecimento coletivo. Aqui não se encontrará um passo a

19 Ana Carolina Einsfeld Mattos e Vanessa Ruffatto Gregoviski passo de como assumir esse lugar de residente, porque entendemos que os processos de resistência não vêm a partir de fórmulas concretas, mas sim terá aqui, pistas e problematizações que farão uma ampliação da imagem do “ser residente”. Desejamos a todxs uma ótima leitura e esperamos fervorosamente que nosso objetivo de fortalecimento do cuidado em saúde mental, assim como o fortalecimento da estrutura formativa das residências, seja de fato apreciado. Ótima Leitura! Há BraSUS. Ana Carolina Einsfeld Mattos Vanessa Ruffatto Gregoviski Organizadoras

21 INTRODUÇÃO – RESISTIR TAMBÉM É COLETIVIZAR PROCESSOS Ana Carolina Einsfeld Mattos1 Vanessa Ruffatto Gregoviski2 Para compreender a opção política que nós, do coletivo de residentes em saúde mental realizamos ao assumir um programa de residência multiprofissional, assim como para garantir nosso respeito enquanto profissionais comprometidas ética e politicamente, é necessário assumir que somos parte (co)responsável no processo de formação de ensino em serviço e, por isso, tomamos as linhas deste livro e tornamos pública nossa contribuição para o fortalecimento tanto dos programas de residência, dos profissionais que almejam ser residentes, dos atores envolvidos na formação, quanto do cuidado em saúde mental em si. Visto isso, faz-se necessário assimilar o processo multifacetado que se constitui um programa de residência multiprofissional a partir da visão de quem vivenciou essa imersão. Construir um Sistema Único de Saúde universal, equânime e integral, utilizando práticas integrativas e democráticas que possibilitem o cuidado em saúde para além de sua dimensão curativa, levando as próprias equipes a repensar as formas de cuidado, é um compromisso de cada profissional que se coloca, independente de qual a sua posição, nos distintos programas de residência multiprofissional. Entretanto, esse compromisso só se cumpre quando todos e todas, indistintamente, se percebem como partícipes deste processo, em um ciclo de reflexão (participativa) e ação, de discurso e escuta entre os próprios atores, para posteriormente ser possível o fazer com os/as usuários/as dos serviços de prática. Esclarecer este processo também perpassa por decifrar criticamente como ele se dá no cotidiano de trabalho, compreendendo que a residência exige um “residir” simbólico no SUS que não se dá apenas 1 Nutricionista, especialista em Saúde Mental, e mestra em Ciências Sociais. 2 Psicóloga, especialista em Saúde Mental, e mestranda em Psicologia Clínica.

22 Introdução – resistir também é coletivizar processos no campo de prática ou na instituição formadora, mas nos mais diversos espaços de formação que nos são ofertados socialmente, assim como nas nossas próprias residências particulares. É compreender que a saúde mental (e acreditamos que a saúde como um todo) não pode ser reduzida a simples hora-relógio, mas que ela se dá de uma forma muito particular e intensa, extrapolando qualquer hora que possa ser contabilizada, levando-nos, por muitas vezes, à exaustão. Para tanto, nossa construção coletiva foi, de fato, um terreno de sustentação. Tornamos esse processo um construto de trocas, apoios e reciprocidade com vistas aos dilemas enfrentados individual e coletivamente no cotidiano. Este livro é a prova que resistir é também coletivizar os processos, pois ao assumir o “nós” percebemos que, no mínimo, não estaríamos em luta sozinhas. Das diversas discussões nestes dois anos, compilamos alguns assuntos que julgamos ser orientadores para a prática da residência em saúde mental, estes foram divididos em capítulos sequenciais e inter-relacionados. Logicamente nossa alçada não atinge todas as indagações, mas, possivelmente, ao relatar nossa vivência, teremos atingindo muitos campos de discussão. No capítulo I a discussão acerca da Reforma Sanitária e o Sistema Único de Saúde (SUS): da luta à construção de um sistema de saúde para todos. É sabido que o SUS que hoje é acessado pelos cidadãos de maneira universal, equânime e integral, não foi sempre assim. Para ele constituir-se nestas modalidades algumas construções foram feitas ao longo das décadas, sempre permeado pelos movimentos sociais. O capítulo II discorre sobre o Modelo de cuidado em saúde mental e a utopia da sua legitimação. Como podemos fortalecer a(s) atuação(ões) em saúde mental que acreditamos? O fortalecimento que visamos tem como ética o olhar proporcionado pela humanização, com novas referências de sociabilidade, novos contratos sociais de relações e um lugar político-social inclusivo, como espaço de vida e como inversão do modelo hegemônico de assistência psiquiátrica. Já no capítulo III, pensamos na Precarização do trabalho e da saúde. O sucateamento e consequente precarização do trabalho que geram o desgaste físico e emocional dos envolvidos nesse processo, objetivando demonstrar uma discussão teórica sobre aspectos considerados chaves: a flexibilização do trabalho, as jornadas de trabalho, o direito às greves e paralisações, a precarização na saúde e a residência multiprofissional. No capítulo IV, refletimos Formação e saúde: residentes multiprofissionais em questão. Percorremos a compreensão e atenção ao cuidado em saúde mental levando em consideração a experiência através da forma-

23 Ana Carolina Einsfeld Mattos e Vanessa Ruffatto Gregoviski ção em Saúde Mental, buscou-se especificar a discussão a partir desta prática. Em função das limitações do trabalho, não há a intenção de dar conta de toda a complexidade da discussão acerca da função social do trabalho e da saúde do(a) trabalhador(a), mas contribuir com as especificidades do desafio de ser residente neste contexto e alertar para a devida atenção que esta temática necessita. O capítulo V deu conta do assunto Residência multiprofissional: o papel da instituição formadora no processo do ensino em serviço. Problematizar a função da instituição, tendo em vista que a nossa experiência, ainda em processo vivo, nos coloca frente a muitas questões sobre esse processo complexo e que envolve muitos atores, tais como: residentes, tutores, professores, preceptores e instituições. Por parte das instituições formadoras, no intuito de que intervenham com uma proposta político-pedagógica que qualifique o processo de ensino em serviço, fortalecendo o SUS e os/as profissionais que nele atuam, construindo a saúde mental que queremos tanto para os/as usuários como para os/as profissionais. Acreditamos que essa troca entre instituições formadoras e equipes de trabalhadores/as da rede pública precisa ser um diálogo inicial, necessário e possível. O capítulo VI Assédio moral e ética no trabalho, visa discutir a respeito de situações que remetem à temática da ética e do assédio moral. Reflete-se sobre o fato de, enquanto profissionais/residentes em Saúde Mental, estarem sujeitas a diversas situações que fragilizam e expõem, para assim considerar o quanto essa prática reflete negativamente no processo formativo e de trabalho das residentes. E por fim, no capítulo VII reafirmamos Por um controle social que facilite a (des)construção de sentidos. Em uma análise reflexiva sobre os conceitos referentes ao controle social presentes na literatura, tendo como aporte teórico a análise de implicações com a finalidade de aprofundar a reflexão sobre ambos os temas, assim como o cotidiano da residência multiprofissional.

Cauê Araujo Bastos Saldanha

25 NOTA CONCEITUAL – A EMERGÊNCIA DE UM NOVO PARADIGMA: SAÚDE É MAIS QUE AUSÊNCIA DE DOENÇA Ana Carolina Einsfeld Mattos1 Monique Scapinello2 Para iniciarmos a conversa Antes de tudo é preciso esclarecer conceitos! A emergência de um novo paradigma: saúde é mais que ausência de doença! Ao avançarmos na discussão acerca do antigo modelo de saúde no país, uma nova lente para o processo de saúde-doença foi impressa, um novo conceito é abarcado. Um movimento se originou em torno da importância da totalidade do sujeito e de seu contexto para se referir à situação de saúde em questão, o que reabre o espaço para a discussão da prática social que dá conta da realidade experienciada pela população (PAIM, 1997). Diante deste posicionamento, aos poucos deixa-se de lado o modelo biomédico hegemônico à época, caracterizado pela dicotomia saúde-doença – na qual saúde era sinônimo de ausência de doença –, para ampliar o olhar para ao aspecto psicossocial (COSTA, 2013), tomando a saúde como um fenômeno que se apresenta na organização social (PUTTINI; PEREIRA JÚNIOR; OLIVEIRA, 2010). Ferraz (1998) explana que o modelo centrado apenas nas práticas médicas tem seus alicerces na prevenção das doenças, trabalhando com enfoque nos indivíduos de alto risco, os identificando e colocando-os sob cuidados preventivos especiais. A partir da Reforma Sanitária, um novo horizonte é almejado: a promoção da saúde, cujos aspectos globais da comunidade são de extrema relevância no processo de saúde e de adoecimento, rompendo com a lógica do individualismo. 1 Nutricionista, especialista em Saúde Mental e mestra em Ciências Sociais. 2 Psicóloga, especialista em Saúde Mental.

26 Nota conceitual – a emergência de um novo paradigma: saúde é mais que ausência de doença Para Mendes (1996) saúde diz respeito à ordem de produção social que expressa a qualidade de vida de uma determinada população, abrangendo, por exemplo, questões culturais, de habitação e de acesso a bens e serviços econômicos e sociais. Já Nogueira (2010) nos convoca a pensar a saúde e a doença como fenômenos ontológicos, unicamente acessíveis pelo pensamento, quebrando com o legado da prática médica técnico-científica, à qual não cabia interpretar o que é a saúde e a doença. A partir deste novo modo de enxergar, abre-se espaço para trazer à luz o conceito de Determinantes Sociais da Saúde (DSS). O entendimento de que a saúde e a doença na coletividade não podem ser explicadas exclusivamente nas suas dimensões biológica e ecológica, inscrevem a necessidade de adentrar-se em fenômenos que são determinados, social e historicamente, enquanto componentes dos processos de reprodução social, abrindo uma lacuna para novas análises e intervenções sobre a realidade (PAIM, 1997). Esta nova concepção exige mudanças no setor saúde, bem como alterações mais profundas em outros setores, no Estado, na sociedade e nas instituições. A Organização Mundial da Saúde (OMS), por exemplo, adota por definição de DSS as condições sociais em que as pessoas vivem e trabalham. Já Buss e Pellegrini Filho (2007), caracterizam três abordagens a serem levadas em conta ao falarmos de DSS: a primeira delas privilegia os aspectos físico-materiais na produção da saúde e da doença, entendendo que as diferenças de renda influenciam a saúde pela escassez de recursos dos indivíduos e pela ausência de investimentos em infraestrutura comunitária (educação, alimentação, transporte, saneamento, habitação, serviços de saúde, etc.), decorrentes de processos econômicos e de decisões políticas. Outro enfoque privilegia os fatores psicossociais, explorando as relações entre percepções das desigualdades sociais, mecanismos psicobiológicos e situações de saúde, com base no conceito de que as percepções e as experiências de pessoas, em sociedades desiguais, provocam estresse e prejuízos à saúde. Os enfoques ecossociais e os chamados enfoques multiníveis buscam integrar as abordagens individuais, grupais, sociais e biológicas numa perspectiva dinâmica, histórica e ecológica (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007). Em suma: determinantes sociais em saúde são os fatores sociais, econômicos, culturais, étnico-raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população. Outra noção que foi germinada a partir do ideário

27 Ana Carolina Einsfeld Mattos e Monique Scapinello da reforma sanitária e da implementação do SUS foi o de aproximação da saúde ao princípio de cidadania plena, que reconhece o direito igual a todos os cidadãos, independentemente de serem ou não contribuintes de um sistema, de terem acesso a bens e serviços de saúde de forma universal (PEREIRA, 1996). Fava e Sonino (2008) esclarecerem que o processo saúde-doença é o resultado da interação de mecanismos orgânico-fisiológicos, interpessoais e ambientais, o que vai de encontro à crítica que diz que a relação saúde-doença é um processo biológico, hereditário, independente de contexto sócio-político-histórico e de determinantes e condicionantes sociais. Tal posicionamento diante do cuidado em saúde deixa claro que a saúde não é unicausal, tampouco a ausência de doença, como tratada no modelo biomédico. A visão ampliada, aqui descrita, é apoiada pela importância de olharmos o sujeito na sua integralidade e complexidade e o papel da residência frente ao cuidado em saúde, deve manter posicionada tal descrição nos contextos de atuação e formação. Para além, a integralidade no cuidado em saúde aos usuários é um dos princípios do SUS, que abrange considerar as especificidades de pessoas ou grupos de pessoas, ainda que minoritários em relação ao total da população, ou seja, integralidade no cuidado em saúde é levar em consideração as necessidades de cada indivíduo e a partir delas contemplar as demandas de saúde (BRASIL, 2008). Visto essa emergência paradigmática é preciso que a concepção de que há os que nada sabem e os que sabem tudo seja revista, reinventada. A cultura, as crenças, valores e opiniões da comunidade em sua pluralidade e dos indivíduos em sua singularidade devem ser levados em conta. Tal atitude pressupõe um esforço de não admitir essa compreensão de forma secundária, desimportante, ilustrativa ou mesmo, coadjuvante no processo, como acontece em muitas situações. Tais fatores são essenciais e podem ser determinantes na construção do seu cuidado em saúde. Assim, tem-se como base essa aliança do indivíduo com o seu próprio caso, mediante as perspectivas do que se torna relevante agregar e que contribuem para a eficácia desse processo, na lógica da autonomia e empoderamento dos sujeitos (PRADO; FALLEIRO; MANO, 2011). REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização.

28 Nota conceitual – a emergência de um novo paradigma: saúde é mais que ausência de doença Humaniza SUS: documento base para gestores e trabalhadores do SUS, 4. ed., Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2008. 72 p. (Série B. Textos Básicos de Saúde). BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, abr. 2007. COSTA, R. V. Atenção à Saúde: discussões sobre os modelos Biomédico e Biopsicossocial. 2013. Disponível em: https://psicologado.com/ atuacao/psicologia-da-saude/atencao-a-saudediscussao-sobre -os-modelos-biomedico-e-biopsicossocial. Acesso em: 10 dez. 2017. FAVA, G.; SONINO, N. O modelo biopsicossocial: trinta anos depois. Psychotherapy and psychosomatics, v. 77, p. 1-2, 2008. FERRAZ, S. T. Promoção da saúde: viagem entre dois paradigmas. Revista de Administração Pública, v. 32, n. 2, p. 49-60, 1998. MENDES, E. V. Um novo paradigma sanitário: a produção social da saúde. In: MENDES, E. V. Uma agenda para a saúde. São Paulo: Hucitec, 1996. p. 233-300. NOGUEIRA, Roberto P. A determinação objetal da doença. In: NOGUEIRA, Roberto P. (org.). Determinação social da saúde e Reforma Sanitária. Rio de Janeiro: Cebes, 2010. p. 135-150. PAIM, J. S. Bases conceituais da reforma sanitária brasileira. 1997. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/6538/1/Paim%20 JS.%20%20Bases%20conceituais.%201997.pdf. PEREIRA, C. A Política Pública como caixa de Pandora: organização de interesses, processo decisório e efeitos perversos na Reforma Sanitária Brasileira – 1985-1989. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 39, n. 3, p. 423-477, 1996. PRADO E. V.; FALLEIRO L. M.; MANO M. A. Cuidado, promoção de saúde e educação popular – porque um não pode viver sem os outros. Revista APS, v. 14, n. 4, p. 464-471, 2011. PUTTINI, R. F.; PEREIRA JÚNIOR, A.; OLIVEIRA, L. R. de. Modelos explicativos em saúde coletiva: abordagem biopsicossocial e auto-organização. Physis: Revista de Saúde Coletiva, p. 753-767, 2010.

Diogo Macedo

31 CAPÍTULO I – REFORMA SANITÁRIA E O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS): DA LUTA À CONSTRUÇÃO DE UM SISTEMA DE SAÚDE PARA TODOS Monique Scapinello1 Historicamente, o Brasil é marcado por um forte discurso liberal, assim como pelo predomínio das decisões econômicas frente ao cenário político (FLEURY, 1988; 1992; 2009). A atenção à saúde dos brasileiros não se diferenciava muito deste modelo, sendo marcada pelo paradigma biomédico e individualista, caracterizadas por precárias organizações dos serviços de saúde desconexos às diversidades da estrutura social do país (PAIM, 1997), principalmente após a golpe militar de 1964. No que tange propriamente ao sistema público de saúde o Brasil vivia sob a duplicidade de um sistema cindido: a medicina previdenciária de um lado e a saúde pública de outro. O primeiro setor tinha ações dirigidas à saúde individual dos trabalhadores formais e voltava-se prioritariamente para as zonas urbanas, estando a cargo dos institutos de pensão. Já a saúde pública, sob o comando do Ministério da Saúde (MS), era direcionada principalmente às zonas rurais e aos setores mais pobres da população, e tinha como alvo, majoritariamente, atividades de caráter preventivo (PAIVA; TEIXEIRA, p. 17, 2014). Diante deste cenário, organizou-se um movimento pela democratização da saúde no Brasil durante a segunda metade da década de 1970, possibilitando a formulação do projeto da Reforma Sanitária Brasileira (RSB). Assim, a RSB foi concebida na luta contra a ditadura militar e em resistência ao modelo de privatização dos serviços de saúde e da Previdência Social, tendo como bandeira “Saúde e Democracia” e a construção de um Estado democrático social, sendo germinada nos serviços de saúde e grupos sociais, nas universidades, no movimento sindical e 1 Psicóloga, especialista em Saúde Mental.

32 Capítulo I - Reforma sanitária e o Sistema Único de Saúde (SUS): da luta à construção de um... em experiências regionais de organização de serviços (PAIM, 1997; 2002; FALEIROS et al., 2006), sustentado por uma base conceitual e por uma produção teórico-crítica e técnico-operacional. Paim (2008) ressalta o caráter sociopolítico desta reforma em nosso país, refletindo novas construções teóricas e mudanças sociais. Escorel (1988 apud PAIM, 1997, p. 13) elucida três pilares de sustentação da reforma: “a prática teórica (a construção do saber), a prática ideológica (a transformação da consciência) e a prática política (a transformação das relações sociais)”, denotando a necessidade de enlaçar nas práticas de saúde suas múltiplas facetas: técnica, social, econômica, ideológicas e política. Neste contexto, então, as opções pelo fortalecimento das políticas públicas e construção das bases de um Estado do Bem-estar Social – padrões de solidariedade social nunca antes conquistados – foram vistas como prioritárias. Ademais, a reforma sanitária também implicou uma reestruturação político-administrativo-institucional ao propor uma profunda reformulação do Sistema Nacional de Saúde: a instituição de um Sistema Único de Saúde, cuja finalidade seria romper a eterna dicotomia entre os dois órgãos, bem como proporcionar uma integralidade às ações de saúde (PEREIRA, 1996), como veremos a seguir. Breve histórico da construção dos sistemas de saúde no Brasil É sabido que o SUS que hoje é acessado pelos cidadãos de maneira universal, equânime e integral, não foi sempre assim. Para ele constituir-se nestas modalidades algumas construções foram feitas ao longo das décadas, sempre permeado pelos movimentos sociais. República Velha (1889-1930) Neste período, havia no Brasil o predomínio das doenças transmissíveis (a peste bubônica, a febre amarela, a tuberculose e a varíola), caracterizadas por um modelo econômico agrário-exportador, levando o Estado brasileiro a intervir sobre o perfil de mortalidade e de morbidade unicamente através de campanhas sanitárias. Ribeiro (2017), aponta como legado deixado pela República Velha a criação da Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP; 1897) e as Caixas de Aposentadoria e Pensão, que proporcionavam assistência médica atrelada à previdência social; a sociedade era essencialmente rural, mas iniciava-se um período de transformações sociais que seria acelerado na primeira metade do século XX (LEI ELOY CHAVES, 1923).

33 Monique Scapinello Era Vargas (1930-1964) A partir da década de 1930, o Brasil emergiu em um processo de industrialização e modernização do Estado. Com isso, houve o predomínio de doenças e de patologias relacionadas à vida moderna. Mesmo com a mudança do perfil epidemiológico, o Estado insistia na manutenção de campanhas sanitárias, associadas a alguns programas especiais e atendimentos em centros e hospitais para os cidadãos em maior vulnerabilidade. A partir desta conjuntura desenhada no país, agora caminhando para a industrialização, Vargas aproximou-se do trabalhador e dos direitos ligados à seguridade social, como aponta Ribeiro (2017). Assim, como nos mostra Ribeiro (2017), na Era Vargas sucederam-se os seguintes fatos: a saúde pública foi institucionalizada pelo Ministério da Educação e Saúde Pública; a Previdência social e saúde ocupacional institucionalizada pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio; criou-se os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP) que estendem a previdência social à maior parte dos trabalhadores urbanos (1933-1938); e em 1953 ocorreu a criação do Ministério da Saúde. Até 1964, a assistência médica previdenciária era prestada, principalmente, pela rede de serviços próprios dos IAPs, compostas por hospitais, ambulatórios e consultórios médicos. A partir da criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), alegando a incapacidade da rede própria de serviços fornecer assistência médica a todos os beneficiários, foi priorizada a contratação de serviços de terceiros. Essa tendência de abandono das ações executivas, em benefício do setor privado foi estabelecida para todos os ministérios (ESCOREL, 2012). Desta forma, os trabalhadores formais urbanos eram assistidos pelos IAPs e organizados por categorias ocupacionais enquanto os cidadãos com mais recursos econômicos eram atendidos pela medicina liberal. Era evidente a lacuna de cobertura assistencial aos demais segmentos da sociedade. Golpe e Autoritarismo Militar (1964-1984) Após a tomada do poder e sufocamento da democracia brasileira, as bandeiras do governo passam a ser a privatização, o modelo econômico atrelado ao capital internacional, a forte concentração de renda e a repressão política (ESCOREL, 2012). Na saúde, instaura-se uma crise sanitária, tendo como exemplo o aumento dos casos de tuberculose, surto de meningite, malária, doença de Chagas e acidentes de trabalho. No campo das políticas sociais é possível identificar algumas mudanças: a unificação dos IAPs, dando lugar ao Instituto Nacional de Previdência So-

34 Capítulo I - Reforma sanitária e o Sistema Único de Saúde (SUS): da luta à construção de um... cial (INPS), em 1966; o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS); o Programa de Integração Social (PIS); o Programa de Formação de Patrimônio do Servidor Público (Pasep); unificação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e a expansão da medicina previdenciária. Como descreve Escorel (2012), manteve-se o perfil apresentado nas décadas antecedentes ao período naquilo que toca a falta de universalização da atenção e do cuidado em saúde, ou seja, os cidadãos que não tinham vínculo formal de trabalho – logo, não contribuíam para a previdência social – obtinham atenção à saúde se fizessem parte do perfil de programas como o materno-infantil, da tuberculose e da hanseníase, por exemplo, em serviços de cunho filantrópico. Aqueles que tinham a possibilidade de pagar recorriam a consultórios ou a clínicas privadas. Nesse contexto, as políticas de saúde dos governos militares visavam claramente a incentivar a expansão do setor privado (PAIVA; TEIXEIRA, 2014). O início da chamada crise sanitária instigava a sociedade civil a lutar por seus direitos, tendo em vista a insuficiência, a má e inadequada distribuição de recursos, bem como o ineficiente e autoritário sistema de atenção e assistência à saúde do país. Iniciam-se, então, os primeiros ensaios de movimentos pela Reforma Sanitária, fortemente intensificado nas décadas seguintes. As narrativas em torno da reforma sanitária brasileira neste período também foram cenário para a criação de dispositivos como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e a Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), instituições chave para o processo de construção da identidade da saúde coletiva no país. Nas palavras de Paiva e Teixeira (2014, p. 22) a Cebes e a Abrasco se propunham a trocar papeis, ou seja, “no lugar de uma perspectiva autoritária, a Abrasco e o Cebes defenderam participação social; no lugar de políticas de controle das doenças, notadamente transmissíveis, a promoção da saúde e melhoria da qualidade geral de vida; no lugar de um setor dividido entre saúde pública e medicina previdenciária, um sistema unificado e universal” Falência do regime militar e a crise da previdência social (1979-1984) Marcado pelo questionamento de sua legitimidade, o regime instituído pelo golpe militar passou pelas crises nos âmbitos econômico, social e moral (ESCOREL, 2012). Já estava mais do que claro que o modelo altamente excludente teve seus efeitos agudizados pelo fim do milagre econômico e pelas fortes exigências de expansão de políticas sociais. Por ser uma proposta racionalizadora, que favorecia o setor público, e de

35 Monique Scapinello cunho democratizante ao incluir a participação comunitária, o programa enfrentou enormes resistências dos setores privatizantes e conservadores, a fim de quebrar com o modelo de atenção à saúde caracterizada pela cisão entre saúde pública, medicina previdenciária e medicina do trabalho. Este também foi o período marcado por discussões e conferências de saúde a nível internacional, sendo a mais importante a Conferência de Alma Ata (1978), dando enfoque aos cuidados primários em saúde. Transição à redemocratização e constituição do SUS (1985-1990) No contexto da luta pela implantação de um estado de bem-estar social, em outubro de 1988 a promulgação da nova Constituição Federal devolveu ao país o frágil regime democrático. Desta forma, frente a tantas movimentações e oxigenação do movimento por um sistema unificado, convocou-se a 8ª Conferência de Saúde, símbolo da Reforma Sanitária, da saúde como direito de todos os cidadãos e, principalmente, da gestação de um Sistema Nacional de Saúde e de financiamento setorial (BRASIL, 2011). A 8ª Conferência Nacional da Saúde aconteceu em março de 1986, sendo a primeira Conferência Nacional da Saúde aberta à sociedade. Em seu relatório consta a participação de mais de 4.000 pessoas, da sociedade civil, trabalhadores e gestores de saúde, reunidas para discutir e estruturar um modelo de atenção à saúde condizente com as necessidades, diversidades e singularidades da riqueza do povo brasileiro. Desta calorosa discussão envolvendo representantes das cinco regiões do país resultou a implantação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), um convênio entre o INAMPS e os governos estaduais (BRASIL, 1986) e das AIS (Ações Integradas de Saúde). (FEUERWERKER, 2005). Assim, a descentralização dos serviços de saúde iniciou-se através destes dispositivos, caracterizando os primeiros mecanismos de participação social após a Reforma Sanitária. Com a formulação da nova carta constitucional, a saúde torna-se um direito de todos os cidadãos, dando origem ao processo de criação de um sistema público, universal e descentralizado de saúde, denotando uma profunda transformação e organização da saúde pública no Brasil (PAIVA; TEIXEIRA, 2014). Com o advento desta nova configuração, antigos problemas, como a tradicional duplicidade que envolvia a separação do sistema entre saúde pública e previdenciária, a centralização das ações político-administrativas e a desvalorização da participação popular, passaram a ser estruturalmente enfrentados.

36 Capítulo I - Reforma sanitária e o Sistema Único de Saúde (SUS): da luta à construção de um... Conceitualmente o Sistema Único de Saúde (SUS) é definido como um sistema nacional integrado, estando organizado por um conjunto de ações que visam à promoção de direitos básicos ao cidadão brasileiro. Sendo assim, o paradigma de saúde contemporâneo baseia-se na noção de cidadania e de direitos humanos, não mais unicamente na relação saúde-doença (MEDEIROS; BERNARDES; GUARESCHI, 2005). Isso significa que a intervenção em saúde tem como objeto de investimento o sujeito, e não apenas o seu diagnóstico (BRASIL, 2004; 2008). Para tanto, a atuação de uma equipe multiprofissional é fundamental para efetivar o princípio da integralidade (PINHEIRO, 2014) assegurado pela legislação. O SUS dos anos 2000 e a ameaça a seu desmonte Neste período, assim como a América Latina, o Brasil seguiu a tendência de promover intervenções estatais no âmbito da saúde. Como visto acima, o final da década de 1970 veio carregado, por um lado, de lutas sociais e transformações no setor da saúde e do outro, do fortalecimento das ideias neoliberais, o que acabou gerando uma crise do planejamento nacional: sustentação do capitalismo e investimento em políticas públicas (MACHADO; BAPTISTA; LIMA, 2010). Vale fazer um resgate, afirmando que o SUS é subfinanciado desde a sua criação, tendo a sua sustentabilidade ameaçada pelas constantes transformações pelas quais o país passa ao longo de sua história (TEMPORÃO, 2016). Atualmente, o perfil epidemiológico demanda do Sistema Único de Saúde tratamentos prolongados e dispendiosos, o que é característico de uma população com acelerado envelhecimento, acompanhado do aumento da prevalência de doenças crônicas, sem ainda ter superado a pauta das doenças infecciosas e transmissíveis por completo (MENDES; FUNCIA, 2016). Temporão (2016) acrescenta pontuando como estas transformações demográfico-epidemiológicas e também tecnológicas e organizacionais, pressionam substancialmente o Sistema Único de Saúde, ameaçando a sua sustentabilidade econômica. A partir deste panorama, Bahia (2011) faz um questionamento importante acerca de uma realidade de desmonte vivida constantemente pelo SUS: de que maneira as três esferas de poder – Ministério da Saúde (MS), governos estaduais e municipais – podem melhorar a eficiência de investimentos no SUS, segundo as singularidades de cada setor sem comprometer o orçamento público e ainda sem submeter-se excessivamente aos mecanismos privados de financiamento cuja tendência é exercer impacto negativo sobre o financiamento público e ainda tornar a saúde uma mercadoria e não um direito de todos os cidadãos?

37 Monique Scapinello Com a aprovação da PEC 241 (BRASIL, 2016) – conhecida como PEC da Morte por congelar os gastos públicos nos próximos vinte anos nos setores de saúde, educação e assistência social – muitas das conquistas do SUS estão ameaçadas. Abrem-se, assim, lacunas importantes a serem ocupadas pelo capital privado, podendo deixar milhares de cidadãos brasileiros sem cobertura e acesso a cuidados em saúde de qualidade. Em Nota Técnica proposta pelo Instituto de Pesquisa Economia Aplicada (IPEA), publicada em setembro de 2016, Rossi e Dweck elucidam a necessidade de um amplo e transparente debate acerca da complexidade e dos impactos que sofrerão as políticas públicas, a economia e a população em geral. A aprovação da emenda foi um dos resultados da manobra política cometida após o golpe de 2016, caracterizado pela tomada sorrateira do poder protagonizado pela direita conservadora do país. Em entrevista à Carta Capital, o Ex-Ministro da Saúde e militante da Reforma Sanitária José Temporão, dá sua opinião: [...] Todos nós, especialistas em saúde pública que militam pela reforma sanitária há décadas, estamos estarrecidos com essa proposta. De um lado, ela denota a ignorância do governo sobre a dinâmica do setor de saúde. Bastaria fazer uma consulta ao portal Saúde Amanhã, da Fiocruz, que abriga uma série de estudos prospectivos dos impactos das transformações econômicas, políticas e sociais no campo da saúde para as próximas décadas, para que a PEC 241 fosse repensada (TEMPORÃO, 2016). Diante deste cenário histórico-político, se faz necessário unir forças e afetos a fim de defender a legitimidade de um sistema de saúde universal, público e com o devido respaldo estatal. Concluindo Traçar linhas e fazer amarras na rede de atenção à saúde não é trabalho simples. Mesmo amparados pelos direitos introduzidos nas áreas da saúde, da previdência e da assistência social é imprescindível a sociedade ocupar-se da ampliação e garantia dos recursos destinados ao financiamento dessas três áreas, integrantes da Seguridade Social (MENDES; FUNCIA, 2016). A Reforma Sanitária e a luta pelo SUS possuem uma história de conquistas na luta pela garantia de direitos aos usuários em caráter universal, equânime e integral. Do mesmo modo, os princípios e diretri-

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