Um jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta

84 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 3 de mercado, “a ‘cobertura de açúcar’ idealista do ‘bolo’ material do padrão de vida ocidental” (SHIVA; MIES, 1993, p. 31). Esta última, caracteriza- da por elas pelo consumo de um conjunto de elementos esotéricos ou ex- traídos de povos não-ocidentais tornados puramente mercadorias, querem “simplesmente ‘comida sem suor’, não se preocupando de onde vem nem de quem é o suor que envolve” (1993, p. 32). Em contraste com essa perspectiva, aquilo que enquadraríamos como questões políticas, participa, nos termos da Morada da Paz, de uma guerra cósmica. Digo participa, pois seria errôneo afirmar que a espiritualidade vivida na Morada da Paz, ‘no fundo’, é política – com seus problemas, seus programas e seus discursos estabelecidos. Não poderíamos reduzir a ação da pomba-gira Elo e seus discursos de empoderamento à luta contra o machismo, ainda que passe por isso. Assim como o contrário, em que a po- lítica fosse reduzida à espiritualidade e com isso dissolver suas particula- ridades em todo indiferente. Não poderíamos dizer, igualmente, que a luta contra o machismo é, na verdade, uma guerra cósmica , pois seria ignorar toda uma gramática particular dos movimentos feministas. Ainda que, para a Morada, a luta contra o machismo possa servir à guerra cósmica da qual participam. O que o feminino e a cura nos obrigam a pensar é que se a espiritualidade não é política, bem como a política não é espiritualidade , há política na espiritualidade , assim como há espiritualidade na política. Produz-se um certo agenciamento capaz de fazer insistir a presença de uma “multiplicidade de outros” na política. A cura, portanto, como cosmopolí- tica (STENGERS, 2014). O conceito cosmopolítica é proposto pela filósofa da ciência Isabelle Stengers em um exercício de pensar a relação entre Ciência e Política. O termo não trata simplesmente de uma relação entre cosmologia e política e nem supõe que o cosmos seja um “mundo comum” partilhado em uma paz perpétua. Isso porque, nos diz a autora, esse mundo que nos detemos a conhecer os ‘fatos’, através das ferramentas técnicas da Ciência moderna, são os ‘nossos’ saberes, mas também estão investidos dos ‘nossos’ valores. E não basta o ‘respeito pelos outros’ ou ‘igualdade de direitos’ para excluir essa diferença. Nesse sentido, cosmopolítica não pretende definir o que é o ‘Bem’ para um mundo comum. O cosmos, tal como figura no termo cosmopolítica, designa o desco- nhecido destes mundos múltiplos, divergentes; as articulações que pode- riam chegar a ser capazes, contra a tentação de uma paz que se quer final, ecumênica, no sentido em que uma transcendência teria o poder de exigir ao que diverge que se reconheça como uma expressão meramente particu- lar do que constrói a convergência de todos (2014, p. 22).

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