Um jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta

83 UM JEITO DE SER E VIVER NO KILOMBO DE MÃE PRETA CURA COMO COSMOPOLÍTICA A tentativa aqui foi suspender a noção de sistema de gênero como um artefato universal de análise, para entender de que modo a comunidade Morada da Paz, as que ficaram , pensa o feminino . A partir disso, descre- vi como o feminino se apresenta enquanto força que existe em constante contraposição com o masculino – cujas atribuições e diferenciações apre- sentam-se pragmaticamente de formas múltiplas, relacionais e situacionais. Desenvolvi como a força do feminino é posta em ação, fazendo da Morada uma curandeira . Porém, longe de apresentar-se como um lugar de passivi- dade, a cura e o cuidado são os modos através dos quais participam de uma guerra cósmica . Nesta guerra, uma multiplicidade de seres encontram-se em relação, produzindo uma percepção ecológica, de “interconexão de toda a vida” (STARHAWK, 2002, p. 231), em que os sujeitos não são pen- sados apartados do que comumente chamamos ‘natureza’, ao contrário, são constantemente afetados por essas exterioridades . A relação que estabelecem com a terra, com os alimentos, com os fármacos e químicas, com as entidades e seres nos permite perceber uma outra formulação, que se distancia radicalmente da percepção comparti- lhada pelo Ocidente do que é ‘natureza’ – nos termos de Latour (2004, p. 54), como aquilo “que permite recapitular em uma só série ordenada a hierarquia dos seres”, oriundos de uma separação entre o que seria objetivo e subjetivo. O que convencionalmente chamamos ‘natureza’ age e atua nos corpos dos sujeitos e estes, igualmente, agem e atuam nela através da cura . Negam tanto a ânsia de controle e anulação destes outros para obtenção de resultados – como, por exemplo, o uso de fertilizantes químicos para apressar a produção – , quanto negam qualquer imaginário romântico de preservação a uma natureza harmoniosa que não deve ser tocada, a coloca- ção de Al. sobre ratos e baratas nos demonstra isso. Sobretudo, a cura nos traz outro modo de relação. Também nos dizem que, do modo como entendem, não é possível separar as bases materiais, a terra, os alimentos e seus venenos, os senti- mentos produzidos por políticas de violência – como o caso apresentado da solidão das mulheres – da espiritualidade , do conjunto de seres e forças que povoam o cosmos e que afetam os sujeitos. Shiva e Mies contrapõem esta inseparabilidade da política e da espiritualidade ao que chamam de “espiritualidade do primeiro mundo” 20 que, para elas, se tornou um nicho 20 “Primeiro” e “terceiro mundo” são conceitos utilizados sem qualquer nota explicativa. Termos que me parecem pouco potentes para dar conta das complexidades dos fluxos religiosos e espirituais, na medida em que homogenizam as experiências através de uma separação geopolítica.

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