Um jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta
79 UM JEITO DE SER E VIVER NO KILOMBO DE MÃE PRETA Essa perspectiva de cuidado e cura também diz respeito a flora local e aos processos de plantio. Assim que eu entrei na comunidade, próximo ao portão de entrada do território, havia uma pequena horta com moran- ga e hortaliças. Contudo, havia uma preocupação generalizada, pois elas não estavam vingando. Explicaram, então, que seria preciso saber o que estava acontecendo com ela, comunicar-se com a terra, para saber qual medida adotariam em relação a horta. Foi em um ipadê que Ys. comentou que fariam um trabalho de transmigração com a terra durante a semana. Foram até a horta, criariam um campo de concentração e ação a partir de defumações, orações e cantos, para “ incorporar o ser da terra” e saber das suas necessidades. Assim que o processo foi finalizado, a mensagem recebida foi de que “ a terra precisa de descanso , o solo tem que ser re- novado” . Por isso decidiram transpor aquela horta para outro espaço do território e utilizar aquele local para a criação de um pomar com laranjeiras e bergamoteiras. Curar e cuidar também se vincula a outros aspectos. Por exemplo, todo o trabalho de recuperação do solo no território, solo esse marcado pelo plantio de eucalipto. Nos dezesseis anos da comunidade consegui- ram reflorestar, com a mata nativa, uma boa porção de terra que antes era utilizada para monocultura de eucalipto. Um pequeno córrego que hoje perpassa a mata, ligada à fonte utilizada para consumo, antes era inexistente. Voltou a correr a partir do cuidado com a mata nativa. Seu P., agricultor que há alguns anos vive na Morada da Paz ainda que não participe da vida espiritual da comunidade, certa vez comentou comigo sobre as dificuldades de cultivo naquela terra. Por conta de tantos anos de monocultura de eucalipto, produzida pelos antigos donos, a terra ficou fraca . Disse-me que se colocassem fertilizantes químicos na terra ela po- deria vingar mais, mas as Yas orientaram que esse processo fosse apenas com compostagem e com fertilizantes orgânicos. Por isso a recuperação da terra é mais lenta. O uso de químicos é pensado, na Morada, da mesma forma que o uso de fármacos no corpo: atua nas consequências e não nas causas do malefício. Certa vez, Bm. e Bg. foram representando a comunidade em um En- contro de Agrofloresta, onde havia pesquisadores e extensionistas de uni- versidades e comunidades locais. Perguntei para Bg. como havia sido e ele disse, sem muito ânimo, que “ é aquela coisa de universidade, né ”. Contou que, para ele, tudo aquilo que falavam e que colocavam como agrofloresta nada mais é do que conhecimento ancestral . Ancestralidade , neste contexto, acionada por ele em referência aos povos indígenas e negros. Perguntaram a ele se na Morada da Paz havia um espaço destinado à agrofloresta e Bg. res- pondeu que na Morada não existia “ um espaço para agrofloresta ”, pois tudo
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