Um jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta

78 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 3 da Morada da Paz é aproximada à matriz budista, em que existe a possi- bilidade de se reencarnar das mais diversas formas 17 . Um exemplo disso foi durante o ano de 2016, quando uma situação profundamente dolorosa ocorreu na comunidade. Um jovem negro, parente próximo de algumas moradoras, foi brutalmente assassinado pelo tráfico da comunidade em que morava. Ele foi acolhido quando desencarnado pelas entidades que traba- lham com a Morada da Paz, e Mãe Preta trouxe a informação de que ele reencarnaria como cachorro em sua próxima vida. Outro exemplo é uma entidade que volta e meia se apresenta na comunidade, trazendo notícias de outras localidades, chamado Laska 18 . Conta que em uma de suas encar- nações veio como uma lasca de árvore e em outra como humano nascido na região fronteiriça do Rio Grande do Sul e morto na Guerra do Paraguai. Aliás, a relação que a Morada da Paz tem com os animais em geral é muito peculiar. Ali não são realizados sacrifícios animais e não se come carne, pois, como An. me explicou, seu consumo implica em “ colocar para dentro de nossos corpos o sofrimento dos animais ”. As galinhas e patos criados, fornecem ovos para consumo, mas “ só morrem de velhice” . As cabras auxiliam com o pasto, mas também não servem de alimento. Apenas os peixes, que vivem no açude, são consumidos. Mas Yb. me explicou: “ a gente conversou com o ‘ser dos peixes’ e, esses que estão no açude, aceita- ram vir ao mundo para servir de alimento ”. Houve, portanto, um processo de negociação espiritual para que pudessem ser consumidos. Fato é que todo e qualquer animal não é morto, incluindo as aranhas que aparecem no interior das casas. São cuidadosamente retiradas dos locais e postas para o lado de fora da casa. Neste sentido, as crianças foram as mi- nhas principais professoras. Já baratas e ratos, todavia, são caracterizados de outra forma. Por vezes são postos venenos para ratos pelos espaços, pois tem épocas que infestam os ambientes. Eles “ servem ao… outro lado ”, me disse certa vez Al., com ar misterioso, mas certificando-se de que eu entendi o que isso significava. Como servem? Eu perguntei. E ela contou que são seres que ficam nos “ rodeando, escondidos, para ouvir o que estamos dizendo e saber o que estamos sentindo para aproveitarem disso ”. 17 Segundo aprendi na Morada da paz, no Budismo Tibetano Mahayana acredita-se na reencarnação e desenvolve-se a ideia de que são os hábitos de cada pessoa que desig- nará o modo como reencarnará. Segundo Ys., isso não implica em ser mais ou menos evoluídos, ou seja, não há uma linearidade evolutiva entre as espécies. Implica apenas que talvez aquela forma permita ao sujeito ter certas experiências importantes para a sua caminhada espiritual . 18 Laska atua nos processos de guerra, nas regiões fronteiriças da América Latina e traz sempre notícias do que acontece no mundo. Ainda que tenha tido uma vida na terra, não é considerado um egum , mas uma entidade.

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