Um jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta
74 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 3 uma “escolha política”, concepção que recupero de bell hooks (1990). Ou seja, não se trata aqui de corroborar com uma ideia de ‘papel natural’ da mulher e da feminilidade, principalmente no que consiste às atribuições da mulher negra como mãe preta 13 através das definições dadas pelo poder colonial branco. É, antes de tudo, um modo de guerrear. MORADA, UMA CURANDEIRA Bell hooks, quando desenvolve a ideia de que o cuidado e a cura realizadas pela mulher negra norte-americana são “escolhas políticas” 14 , ela toma a casa, espaço de gestão da mulher, como lugar de resistência e de fortalecimento da comunidade negra frente a sociedade de suprema- cia branca e capitalista. Mostra-nos que a luta das mulheres por ocupar espaços públicos, percebendo os espaços privados como politicamente neutros, diz respeito a uma concepção feminista branca que não condiz com a realidade das mulheres negras. Busca, portanto, revalorizar o papel dessas mulheres na gestão da casa e em sua atuação de cuidado e cura da comunidade negra como fundamentais para a luta contra a supremacia branca e capitalista. 13 Recupero aqui as palavras de Lélia Gonzalez sobre o papel da “Mãe Preta” sob os olhos do poder colonial branco e sua releitura: “...tanto a “mãe Preta” quanto o “pai João” têm sido explorados pela ideologia oficial como exemplos de integração e harmonia raciais, supostamente existentes no Brasil. Representariam o negro acomodado, que passiva- mente aceitou a escravidão e a ela correspondeu segundo a maneira cristã, oferecendo a outra face ao inimigo. Entretanto, não aceitamos tais estereótipos como reflexos “fiéis” de uma realidade vivida com tanta dor e humilhação. Não podemos deixar de levar em consideração que existem variações quanto às formas de resistência. E uma delas, é a chamada “resistência passiva” (…) Mais precisamente, coube à “Mãe Preta”, enquanto sujeito-suposto-saber, a africanização do português falado no Brasil (…) e, consequen- temente, a própria africanização da cultura brasileira” (GONZALEZ, 1982, p. 93-94). 14 Retomo as considerações feitas por bell hooks (1990) ao descrever a importância que as mulheres negras tiveram na gerência da casa – e nas práticas de cuidado e cura que ali se desenvolviam – para os processos de resistência da comunidade negra estadunidense. A autora diferencia as percepções teórico-políticas das mulheres negras das feministas brancas que, por sua vez, percebem a separação entre a vida pública e a vida privada, essa última concernente nas sociedades capitalistas patriarcais à mulher, como equiva- lente a vida política e a vida politicamente neutra, respectivamente. O que bell hooks sugere é que, na perspectiva das mulheres negras, o privado, o lugar da casa, do cuidado e da cura, não é politicamente neutro. Ao contrário, é um dos principais alicerces de resistência das famílias negras, contra a supremacia branca, capitalista e patriarcal. A escolha política emerge no texto de hooks não corroborando com uma noção de política “consciente” ou elaborada discursivamente, mas como uma prática fundamental para a existência e sobrevivência da comunidade negra.
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy MjEzNzYz