Um jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta
73 UM JEITO DE SER E VIVER NO KILOMBO DE MÃE PRETA nidade e que ali trabalhavam com a ideia da complementariedade entre homens e mulheres, assim como das forças do feminino e do masculino . Logo Ik. contou a história da comunidade e o fato de as mulheres negras serem aquelas “ que ficaram ”. Ik. seguiu em sua reflexão: “ a comunidade sempre foi uma força feminina, mesmo quando o número de homens era igual. Sempre se pensou como fazer, como falar, como conviver com mais cuidado, mais afeto, com mais flexibilidade ”. O interessante de perceber aqui é que o mais acionado por Ik. deno- ta, claro, que há um menos e que diz respeito ao “ mundo aí fora” , como ela designou, caracterizado pela força do masculino , pois é marcado pela inflexibilidade – “ um mundo de violência, de mortes, de desrespeitos, de desigualdades, onde as pessoas mal se olham ”, disse com pesar. “ Mas tem momentos que a energia masculina é importante pra comunidade ”, lem- brou Mj., “ por exemplo, quando se estabeleceu os princípios norteadores se precisou de uma força mais dura, mais inflexível ”. Consideração com a qual todas concordaram, ainda percebendo que, mesmo assim, o masculino acionado dentro da comunidade é diferente do masculino acionado aí fora , porque existe em equilíbrio com o feminino . Apresentam-nos, novamente, a multiplicidade dessas formas. Feminino e masculino não são tão evidentes e tão facilmente fixados em determinadas características, nem em corpos – o que permite que Ys. caracterize Bg. como o homem mais feminino e que Yb. desenvolva a refle- xão de que ela, casada com Bg., expressa mais a força masculina na rela- ção. O que acredito que seja importante de destacar é o fato de o feminino e o masculino só existirem quando em relação e sugiro que as características atribuídas a cada qual não são qualidades intrínsecas ou o que seria a ‘es- sência’ do feminino e do masculino , mas “imagens que possibilitam aces- sos” 12 (STARHAWK, 1988, 88). Neste sentido, possibilitam contrastes e, principalmente, possibilitam ações no mundo. É dessa forma que a Morada constrói a si mesma através da imagem de uma curandeira . O rito das Geledés nos mostra que mesmo a Morada da Paz não sendo do enfrentamento , atua em uma guerra através do cuidado e da cura . Isso denota uma dimensão fundamental de sua existência: atuar desta forma é 12 O contexto a partir do qual Starhawk elabora sua reflexão é o neopaganismo norte-a- mericano. Evidente que há inúmeras diferenças entre suas percepções sobre tais forças e as desenvolvidas pela Morada da Paz e destaco apenas uma que me parece central, mas o que me interessa aqui, sobretudo, é a atenção dada por Starhawk a essas forças: “As imagens, os símbolos, os aspectos, são chaves de entrada e não definições. Não há uma natureza masculina ou feminina subjacentes – há a realidade que experienciamos, nos nossos diferentes corpos, nos diferentes impactos que a cultura tem em cada sexo” (1988, p. 74).
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