Um jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta
72 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 3 Essa fala de Mãe Preta, contudo, me parece bastante conectada com ou- tra fala que elaborou em um momento em que Seu Sete, manifestado no cor- po de Ys., e Ogum Beira-mar, manifestado no corpo de Ym., realizaram um trabalho forte . Logo depois que terminaram, Mãe Preta se manifestou em Ys. com o propósito de nos explicar o que havia acontecido. O trabalho reali- zado foi direcionado aos omadês , termo em iorubá para designar as crianças. Ali, Mãe Preta narrou sobre a diferença existente entre homens e mulheres e entre as duas levas de bacuris na comunidade. Aprimeira leva designa crian- ças que variam entre 7 a 17 anos e são todas mulheres, com exceção deAy.. A segunda leva , com idade até cinco anos, é formada por meninos. Disse-nos que o trabalho realizado tinha por intuito “ cortar as ener- gias negativas ” que chegavam aos progenitores e que afetavam as crianças da segunda leva . Foi preciso fazer um trabalho com as mães e pais para que essas energias não alcançassem as crianças. Isso porque elas, que são meninos, têm maior dependência do que as da primeira leva. “As mulheres vêm prontas, são mais firmes nas suas caminhadas”, por isso vieram pri- meiro, para “abrir os caminhos”. Em contrapartida, os meninos não vêm prontos, “não são tão firmes em seus propósitos” , são mais suscetíveis as energias densas e por isso demandam maior atenção, disse-nos Mãe Preta. Em outro momento El. retomou a fala de Mãe Preta e explicou que existem diferentes relações de dependência entre os pais e as filhas e os filhos. Ain- da que as primeiras venham “mais firmes nas suas caminhadas” do que os segundos, todos os seres estão sujeitos a relações com as ditas energias densas. A relação varia não em natureza, mas em intensidade. Se num primeiro momento o feminino e o masculino são caracteriza- dos por determinados atributos – como desbravar e cuidar –, é interessante perceber que essas qualidades são embaralhadas de acordo com as situa- ções vivenciadas. E se há relação entre a mulher, enquanto um compos- to de características socialmente atribuídas, e o feminino , enquanto força , esses termos também são recombinados quando Mãe Preta nos diz que as mulheres vieram primeiro para “ abrir os caminhos ”, características que, a princípio, seriam da força do masculino . Ou, também, quando Xangô, a verdade e a justiça foram associadas ao feminino . Penso, portanto, que o fe- minino e o masculino são cortes relacionais estabelecidos em uma mesma linha de continuidade que variam conforme as situações vivenciadas e são contextualmente acionadas. Em outra situação, alguém próximo à comunidade questionou: “o que caracteriza a Morada como feminina ?”. A resposta mais rápida foi dada por O. T., iaô da comunidade, pautada na ideia de que a comunidade é formada majoritariamente por mulheres, principalmente mulheres negras. Mas logo Mj., também iaô , ressaltou que havia também homens na comu-
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy MjEzNzYz