Um jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta

70 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 3 de cura ”, recebe essas militantes e auxilia na “ reconstrução de seus corpos espirituais ”. Mas também teceu alguns paralelos entre a luta travada por J. contra o aparato policial e as lutas travadas pela Morada no território. Disse a nós que a Morada não está na linha de frente, junto com os militantes , pois a Morada não se propõe a isso. Como diz Mãe Preta, “ a Morada não é do enfrentamento, é do anunciamento ”, porque anuncia um outro mundo possível . Contudo, tem uma ação semelhante aos militantes nos chamados trabalhos de transmigração , onde se vê e se lida com muitos seres e ener- gias densas , tanto quanto quem está no enfrentamento com a polícia. Pois se a Morada não é do enfrentamento, é importante salientar que também guerreia. Contudo, a luta em que a Morada se engaja é outra e podemos perceber isso através do rito das Geledés . Todo mês de março é comemorado o Ano Novo Solar 11 e em 2016 foi um início de ano singular, pois se realizou o rito das Geledés . Há quatro anos preparavam-se para a execução desse rito, de origem iorubá. É desempenhado só por mulheres e se propõe ao culto da força da ancestralidade feminina guerreira . Quem trouxe esse rito aos cuidados da comunidade foi a Yabá ancestral Mãe Pre- ta e o motivo de tê-lo recuperado é porque adentraríamos épocas muito difíceis, muito densas , e que seria necessário o poder das guerreiras para enfrentar esse novo ciclo. Seis mulheres da comunidade, todas negras, passaram pelo rito, que implicou no ofertório dos cabelos para a confecção das máscaras, chama- das Geledés , e uma série de ritualísticas a serem seguidas a partir de então, incluindo tabus alimentares e orientações comportamentais e de vestimen- ta. No início de 2016 houve a primeira manifestação aberta às pessoas ex- ternas das Geledés , com os Orixás de Frente dançando com suas máscaras. O próximo rito das Geledés acontecerá, segundo dizem, no próximo ano bissexto, mas as máscaras produzidas neste ciclo ritual serão apresentadas a cada comemoração de novo Ano. No Ano Novo Solar de 2017 eu pude presenciar a celebração. Estáva- mos na área central do território, um descampado que existe entre as casas da comunidade, em círculo. Algumas das Yas e egbomis foram convidadas por Ys. a fazerem um círculo interno, de mãos dadas. A atmosfera estava permeada por uma espécie de tensão ritualística. Os tambores saudaram Xangô e um orin , um rezo sagrado, iniciou. O “ sopro da vida ”, como no- meiam esse rito, teve seu início entre àquelas que se encontravam de mãos dadas. Em uma dança circular de aproximação e distanciamento em torno 11 A comemoração do Ano Novo não segue o calendário gregoriano. Ao contrário, pau- ta-se pelo início do equinócio de outono, que é dito na comunidade ser um processo de maturação da vida para o novo ciclo.

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