Um jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta

68 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 3 mas elementos de poder , quando cuidadosamente preparados pelas giras, que atuam no fortalecimento dos corpos daquelas que usam. O trabalho desenvolvido por Elo se dá em muitas escalas e isso é importante ressaltar. Das giras que se manifestam na Comunidade Mora- da da Paz é comum serem designadas como alinhadas com a Pomba-gira Elo. O alinhamento consiste em um trabalho que a própria Elo realiza de recuperação das giras. Disseram-me, certa vez, que Elo adentra os espaços mais densos para recuperar essas giras que realizam trabalhos por trocas materiais e que servem a todos os lados . Portanto, Elo trabalha na recupe- ração de não-humanas, as giras, e nos aconselhamentos e trabalhos com as humanas que procuram a Morada em momentos rituais como esse narrado. Mas também nos traz notícias e estabelece conexões com mulheres (huma- nas e não-humanas) de longe, que precisam ser lembradas e fortalecidas. Um exemplo disso, também ocorrido durante a Gira de Amotara , quando Elo nos questionou: “ quantas de vocês sentiram-se sozinhas, soli- tárias, nos últimos dias? ”. A concordância silenciosa foi generalizada. Até que ela comentou: “ essa solidão não é apenas de vocês. O modo como ela se manifesta é a partir de lembranças da vida de cada uma, mas a solidão que vocês sentiram é a solidão das muitas mulheres vítimas de violências e injustiças espalhadas pelo mundo todo ”. Comentou que por toda a Améri- ca Latina há tentativas de esterilização dos corpos das mulheres, medicinas que, sem seus consentimentos, as impedem de terem seus filhos. Comen- tou também sobre as mortes, as violências e os abusos cometidos contra as travestis e as transexuais. Provocou-nos a pensar sobre a solidão que sen- tíamos e a nos colocar em sintonia com essas mulheres, para emanarmos energias capazes de fortalecer os seus corpos. Sua fala contagiava-nos e nos engajava em atos de cura . A solidão, que poderia ser tratada de forma individual, foi coletivizada. E, mais do que isso, foi motivo de um trabalho espiritual prático, ao emanarmos ener- gias a outras mulheres. Afinal, ao conceber aquelas que ali estavam como bruxas capazes de realizar atos de cura – para si e para outras –, as trans- formou de ‘vítimas’ da solidão a protagonistas capazes de transmigrar , conceito que tratarei mais adiante, este sentimento. ANUNCIAMENTO Todo ano, no mês de junho, acontece um ritual aberto às pessoas ex- ternas chamado Terreiro de Chão Batido . É um rito em que, segundo me informaram, Exu passa para Xangô – ou seja, passa a regência do tempo para Xangô. Afinal, para a Morada da Paz, a cronologia do tempo – dias,

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