Um jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta

66 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 3 te múltiplas. É verdade que as entidades são associadas a essas respectivas ações no mundo. Mas se analisarmos o modo como elas fazem-se presentes ou são acionadas no cotidiano da comunidade, podemos perceber que exis- tem três campos de atuação centrais que constituem ambas as forças – eu designo como a guerra, o acolhimento e a limpeza/sexualidade. No âmbito do feminino , as entidades guerreiras são Obá, Oyá, Cabo- cla Jurema – ainda que haja também algumas Oxuns e Yemanjás –, no âm- bito masculino – Ogum, Xangô, uma série de caboclos e também Oxaguiã. As mães d’água – Oxum, Nanã e Iemanjá – e as pretas-velhas estariam mais associadas ao cuidado e ao acolhimento, assim como os pretos-velhos e Oxalá. As Pombas-giras e Exus são as entidades acionadas em qualquer situação que demande limpeza, principalmente no início – e às vezes ao final – de ritos realizados. Contudo, no quesito sexualidade são as Pombas- -giras as entidades acionadas, tanto para trabalhar com mulheres, quanto com homens. Sei que é preciso ter cuidado com essas designações, pois qualquer pessoa da comunidade colocaria a questão de que Xangô também acolhe e cuida dos seus filhos e Mãe Preta também guerreia contra as ener- gias densas que acometem os corpos dos sujeitos, por exemplo, ainda que Xangô esteja mais para a guerra do que Mãe Preta. E aí reside a complexi- dade dos termos. Há uma relação entre corpo e essas forças que não passa pelos as- pectos biológicos, ainda que se relacione com eles. Para a Morada da Paz as forças do feminino e do masculino estão vinculadas ao chakra básico , constituinte de todos os corpos, localizado diretamente no final da coluna vertebral – conhecimentos oriundos da matriz budista que constitui a espi- ritualidade afrobudígena da comunidade. O chakra básico , me ensinaram, é aquele responsável pela “ conexão com a Terra ”, com a energia vital, impulso criativo e sexualidade e corresponde à saúde dos órgãos sexuais. É para ele que se volta a atenção durante o trabalho dos homens e das mulheres , ritual específico e aberto a pessoas externas que ocorre no terri- tório. Os lugares onde esses trabalhos ocorrem são diferentes, havendo um espaço para o trabalho dos homens e outro para o trabalho das mulheres . Também não acontecem nos mesmos momentos, variando conforme a lua: na lua cheia ocorre o primeiro e na lua crescente o segundo. Eu nunca participei dos trabalhos dos homens , aliás, a nenhuma mulher é dada essa possibilidade, apenas quando esteja dando corpo para a manifestação das entidades . São orientados e conduzidos por Ogum Beira-Mar, manifestado em Ym., Ya da comunidade, e por Ogum de Malê, manifestado em Ak., egbomi (irmã mais velha) da comunidade. Porém, volta e meia o trabalho dos homens conta com a participação e condução da pomba-gira Elo, que se manifesta em Ys., também Ya da comunidade.

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