Um jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta
65 UM JEITO DE SER E VIVER NO KILOMBO DE MÃE PRETA vinculado à intuição, acolhida e cuidado. Bm. complementa, dizendo que também há o cuidado no masculino , ainda que seja de outra forma. Contu- do, a delicadeza, a atenção aos detalhes, seriam características do feminino . Questionei se existe alguma relação entre a força do feminino e mu- lheres e a força do masculino e homens. Tj. comenta que entende a mulher como uma espécie de ‘materialização’ da força do feminino e o homem como a ‘materialização’ da força do masculino . Por isso, diz ela, a Mo- rada desenvolve o trabalho dos homens e o trabalho das mulheres , para que possam se alinhar respectivamente com a energia do masculino e do feminino . Mas logo Yb., casada com Bg, complementa: “ É gente, e tem momentos que a gente que é mulher tem mais a força do masculino que do feminino. A gente pode perceber isso nas nossas relações de casal ”. Ou seja, as relações entre força e gênero – enquanto características socialmen- te atribuídas – existem, mas são sempre parciais 9 . “O masculino é o poder ativo e o feminino é o poder passivo e não é que um seja melhor que o outro, ao contrário, o equilíbrio dos dois que é importante”, relembra Or.. “O masculino é a força do caçador, que vai trazer a caça pra sua família”, “é a força de Ogum que é guerreiro e que vai des- bravar”, já “o feminino tem a ver com zelo, como o cuidado das mães das águas”, dizem as demais. Mas existe Oyá que é um orixá feminino da guerra, digo. Todas concordam e Yb., como ummodo de diferenciar Oyá dos demais “Orixás de frente”, que são os Orixás guerreiros, salienta: “mas pode ver, ela usa da sensualidade na guerra, por isso que dança assim” – e mostra-me com seu corpo o modo como Oyá dança. O que dá a entender, portanto, que a sensualidade é um dos atributos do feminino e uma arma de Oyá. Porém, mesmo que em um primeiro momento o feminino seja vin- culado a ideia de cuidado, cura e acolhimento e o masculino a ideia de desbravamento, ação e enfrentamento, é interessante perceber, a partir do panteão africano trabalhado na comunidade, que os termos se embaralham e se complexificam, em que as relações binárias mostram-se profundamen- 9 As múltiplas imagens por onde o feminino e o masculino se apresentam são formas, são códigos através do qual a Morada habilmente mobiliza forças, tal como o faz o artista plástico, nas palavras de Deleuze e Guattari (1997, p. 134): “Cada forma é como o códi- go de um meio, e a passagem de uma forma a outra é uma verdadeira transcodificação. Mesmo as estações são meios. Há aí duas operações coexistentes, uma através da qual a forma se diferencia de acordo com distinções binárias, outra através da qual as partes substanciais enfermadas, os meios ou estações, entram numa ordem de sucessão que pode ser a mesma nos dois sentidos. Mas, sob essas operações, o artista plástico arrisca uma aventura extrema, perigosa. Ele ventila os meios, separa-os, harmoniza-os, regula- menta suas misturas, passa de um a outro. O que ele afronta assim é o caos, as forças do caos, as forças de uma matéria bruta indomada, às quais as Formas devem impor-se para fazer substâncias, os Códigos, para fazer meios. Prodigiosa agilidade”.
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