Um jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta
63 UM JEITO DE SER E VIVER NO KILOMBO DE MÃE PRETA todos os momentos em que são convidadas a falarem de si, contam que em um dado momento, cujo marco temporal é 2005, “ nos demos conta de que somos as que ficaram ”. Narrar-se assim funciona como um ato conclusivo de um percurso feito – um dar-se conta de como são e onde estão –, mas também como um ponto inicial de um percurso a ser realizado – uma percepção do que se pode fazer a partir disso. Ser “ as que ficaram ” é para onde voltam-se constantemente e cada retorno realizado impulsiona a produção de novos percursos criativos na construção coletiva da Morada da Paz. Destaco aqui a conquista da certificação de autorreconhecimento como comunidade quilombola obtida pela Fundação Cultural Palmares em 2016 e a consta- tação de que a Morada é uma comunidade feminina que atua como uma curandeira . Fato é que essa narrativa, as que ficaram , não é incomum no relato de mulheres negras, fruto do abandono de seus cônjuges e dos preterimen- tos que sofrem em uma sociedade racista (Pacheco 2013; Souza 2008). Porém, as mais velhas não inscrevem sua constatação e reflexão na lógica do ‘abandono’ 6 . Quando narram suas histórias, “ somos as que ficaram ” emerge como constatação de resistência 7 , pois foram aquelas que permane- ceram nos propósitos espiritais . Levando isso em consideração, pretendo aqui desenvolver como emerge a partir destas mulheres uma teoria singular do que é o feminino , que configura um modo de atuar no mundo. O FEMININO E O MASCULINO Estávamos na cozinha, em diferentes funções de organização do es- paço. Iniciamos uma conversa, em meio a risadas provocadas pela obser- vação das crianças na mesa que se divertiam com os alimentos. Faláva- mos sobre educação familiar, os papéis das figuras maternas e paternas na educação da criança e adentramos, por fim, a uma longa conversa sobre o que seria a energia (ou força ) do feminino e do masculino . O feminino e sempre presentes. Dizer-se a que ficou é, de alguma forma, afirmar essa posição que não é permanente, nem estática, mas uma escolha. É recontratar os termos da sua permanên- cia. Dessa forma, é um retorno a um território que é sempre retraçado, ou seja, um novo território. 6 Os homens que saíram da comunidade assim o fizeram por diferentes motivos e, apesar das diferenças, as falas recorrentes sobre suas saídas são “ não souberam lidar com a vida em comunidade ” e “ não souberam lidar com as autoridades femininas ”. 7 Entendo resistência não como uma oposição crítica ou reação a um poder instituído, mas como atos de criação de outras formas de existência.
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