Um jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta
62 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 3 São estas entidades , sobretudo, mas não unicamente, que guiam a comunidade e todas e todos aqueles que dela participam e manifestam- -se através dos processos de incorporação em Ys., Yá da comunidade. A comunidade é formada por diferentes grupos de acordo com o tempo de dedicação à vida espiritual. Há as Yás e Bàbá , as mães e pai da comunidade e fundadores, que são quatro mulheres e um homem; três egbomis , as irmãs mais velhas; as e os iaôs , novas iniciadas e iniciados que atualmente são oito. Além destes, há os omadês ( crianças), os odomodês (adolescentes) e os pitocos (crianças de até cinco anos). Todos moram na comunidade. El., também Ya , ao relatar como a Morada da Paz começou, disse que não se consideram feministas e nunca se propuseram ser uma comunidade formada majoritariamente por mulheres. Ao contrário, inicialmente havia um número equilibrado de homens e mulheres. Também não se propuse- ram a ser uma comunidade negra, por ideologia , ainda que a maior parte dos integrantes desde sempre fossem negros. O que as constitui enquanto coletivo é sobretudo o que chamam espiritualidade , desde o início da co- munidade em 2001, e até mesmo antes disso, quando em 1998 iniciaram o Grupo Cosmos 4 . Porém, ainda que iniciada de forma mais equilibrada no que consiste a gênero, são elas, mulheres negras, as que ficaram . Esta expressão funciona como um “ritornelo” 5 na narrativa das mais velhas. Em 4 O grupo Cosmos foi fundado por Ys. e outras pessoas. As fundadoras da Comunidade da Paz também participavam do grupo Cosmos, criado em 1998, e foi através dele que a Morada da Paz se originou. Tratava-se de um grupo de estudo sobre a mediunidade situada em Porto Alegre. 5 “O ritornelo merece duas vezes seu nome: em primeiro lugar, como traçado que retorna sobre si, se retoma, se repete; depois, como circularidade dos três dinamismos (procurar um território para si = procurar alcançá-lo). Assim, todo começo já é um retorno, mas implica sempre uma distância, uma diferença: a reterritorialização, correlato da desterri- torialização, nunca é um retorno ao mesmo. Não há chegada, nunca há senão um retorno, mas regressar é pensado numa relação avesso-direito, recto-verso com partir, e é ao mesmo tempo que se parte e se regressa. Por conseguinte, há duas maneiras distintas de partir regressar, e de infinitizar esse par: a errância do exílio e o apelo do sem-fundo, ou então o deslocamento nômade e o apelo do fora (a terra natal sendo apenas um fora am- bíguo: MP, 401). São duas formas de distanciamento de si: dilaceramento do si ao qual não se cessa de retornar como a um estrangeiro, uma vez que ele está perdido (relação do Exilado com o Natal, incluído no 2° tempo da primeira tríade); extirpação de si ao qual só se regressa como estrangeiro, desconhecível ou tornado imperceptível (relação do Nômade com o Cosmo, 3° tempo da segunda tríade)” (ZOURABICHIVILI, 2004, p. 51). Uso o conceito de ritornelo da obra de Deleuze e Guattari da forma menos compro- metida possível. O que me agrada na elaboração desse conceito é a ideia de um retorno possível de ser estabelecido e que, contudo, nunca é o mesmo. Penso que a afirmação “somos as que ficaram”, em todas as narrativas elaboradas pelas Yas funcionam como um ritornelo, um retorno a uma condição compartilhada que é bastante frágil, pois, como sempre nos dizem, os questionamentos e as reflexões sobre suas escolhas de vida estão
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