Um jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta
60 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 3 rísticas socialmente atribuídas, como uma categoria de análise para a com- preensão de toda e qualquer cultura e povo. A autora desenvolve seu trabalho com a cultura iorubá na Nigéria e defende a tese de que não existia relações de gênero antes da chegada do poder colonial e que foi a presença forçada e violenta dos colonizadores em terras iorubanas que inventou mulheres e homens. Mas atenta para uma dimensão ainda mais complexa que é, sobretudo, da produção de conheci- mento. Não nega a relevância do gênero nas produções de conhecimento, principalmente em detrimento do encontro colonial, mas questiona sua uti- lização enquanto um artefato analítico universal, a partir daqueles com os quais trabalhou e que se pensavam a si próprios através de outros meios. Por isso, inscreve o debate de gênero em uma história dos discursos, en- tendendo sua suposta universalidade também como uma forma colonialista oriunda do feminismo branco, e questiona qual outra “cartografia social” se apresentava entre o povo Oyó-iorubá. O ponto central, me parece, é que, para ela, o Ocidente produz e re- produz o sistema de gênero, que estabelece uma relação substancializada com as definições corporificadas a partir de preceitos biológicos, ainda que deseje romper com o sexo. Segundo ela, as diferenças sexuais não derivam características socialmente atribuídas e hierarquicamente organizadas, pois o corpo generificado não era a base dos papéis sociais, nem o fundamento da identidade. As relações de hierarquia que se manifestavam na cultura io- rubá eram de senioridade e não de gênero, o que fazia com que as relações mudassem radicalmente de acordo com quem se interagia – se mais novo ou mais velho –, assim como a posição do próprio sujeito alterava ao longo do tempo, muito além da polaridade homem e mulher que ela atribui um valor estático frente à variação etária. Ela nos diz ainda que a organização social do mundo a partir de pre- ceitos biológicos e essencialistas é uma questão do ocidente, assim como o outro lado desta mesma moeda, ou seja, a necessária denúncia dessa orga- nização que o conceito de gênero engendra e provoca. Em momento algum rechaça a importância deste conceito, que percebe como fundamental para compreender e denunciar as investidas coloniais. Porém, questiona sua uni- versalidade e deixa uma provocação ao final de seu livro às pesquisadoras e pesquisadores da cultura iorubá, mas que, acredito, pode ter maior extensão: Perguntas como “por que se vitimiza ou subordina as mulheres?” ou “qual é a divisão sexual do trabalho?” não são perguntas de primeira ordem em relação à terra Iorubá, porque ambas pressupõem o gênero. Al- gumas perguntas básicas para alguém que tiver interesse na análise da or- ganização social, poderia ser “qual é a concepção iorubá da diferença? O corpo se utiliza como evidência nesta concepção?”. Um investigador ou
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