Um jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta

16 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 3 O livro é uma narrativa sensível e um registro de memórias sobre o processo de autorreconhecimento da CoMPaz, em que os corpos negros são sujeitos e não objetos das teorias e metodologias científicas vigentes. Os textos e imagens materializam as lutas da CoMPaz, sua organização, seu contexto histórico, social e cultural, bem como suas estratégias cos- mopolíticas nas relações sujeito-natureza e sujeito-sujeito, dentro e fora do território sagrado, comunicando mundos in(visíveis). Ao longo de cada capítulo, leitoras e leitores têm a oportunidade de olhar para o território CoMPaz na perspectiva de Milton Santos, um dos maiores intelectuais que o Brasil já teve, em que o território não é apenas um conjunto de formas naturais, mas um conjunto de sistemas naturais e artificiais, junto com as pessoas, as instituições e as empresas que abriga, não importa o seu poder. (...) É desse modo que ele constitui, pelos lugares, aquele quadro da vida social onde tudo é interdependente, levando, também, à fusão entre o local, o global invasor e o nacional sem defesa (no caso do Brasil) (SANTOS, 2002, p. 84). Ao percorrer as páginas do livro e ao se deparar com a verdade desve- lada que a CoMPaz vive, fomenta e expõe, não se pode negar que a história aqui contada desafia as lógicas cruéis da colonização, do patriarcado e do capitalismo, subvertendo a tragédia da escravidão atlântica e contemporâ- nea, para juntar com pontos feitos com agulha o tecido social brasileiro. Destaca-se, no livro, o olhar das mais velhas e dos mais velhos, mas sem perder de vista a sabedoria das mais novas e dos mais novos, como num xirê (festa, roda, brincadeira) literário e epistêmico no contexto de uma vi- vência afrobudígena , capaz de abarcar ancestralidade e histórias intercon- tinentais, lugares de disputas, territórios, (con)vivências. O texto apresen- tado é um espaço dialógico de constante (des)formação em que a música ancestral, os toques dos atabaques, a sacudida dos maracás, os sons dos gongos, as comidas ovolactovegetarianas, os cheiros e os abraços carre- gados de asé (força, sabedoria) nos ligam ao aiyê (mundo, vida) e ao orun (céu), permeados de estrelas, e nos despertam para outras interpretações da realidade historicamente construída. São as histórias de Mãe Preta, cujo ventre pariu as estrelas do céu negro no atravessar eterno do azul-petró- leo do Atlântico, que vão dando voz, representatividade e posicionamento político para essas mulheres negras que pensam, escrevem, agem e dizem palavras carregadas de brasilidade nagô que dão forma e sentido à existên- cia, por meio de Orí (cabeça) , ara (corpo) , okàn (coração) , num verdadeiro ebo (sacrifício) coletivo.

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