Um jeito de ser e viver no kilombo de Mãe Preta

130 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 3 coexistentes e de que a harmonia e o bem viver estão condicionados ao respeito às diferenças, à noção de interdependência e a uma vida sagrada. Na década de 90, quando nós, hoje moradores da comunidade nos reencontramos, havia a certeza do que desejávamos abdicar em nossas vi- das: a sensação de desconforto coletivo e os males provocados pela in- dividualidade, competitividade, artificialidade, o sofrimento emocional e espiritual frequentes, o adoecimento físico, entre outros. Ainda não ha- víamos despertado para a atuação étnico racial, mas o desconforto com a desigualdade, com as expressões do racismo e a ausência de valorização social sobre os aspectos identitários e culturais dos povos já eram sentidos individualmente, pelos futuros moradores da Comunidade. E sabíamos que negar a pulsão de vida que é constitutiva do paradigma civilizatório origi- nado nessas matrizes ancestrais e que até os dias de hoje são guarnecidas pelos anciões, iria impor a cada um sofrimento que não sabíamos nominar, mas sentíamos. Viver em comunidade foi para nós, moradores da Comu- nidade Kilombola Morada da Paz, uma escolha consciente e na contramão dos modelos familiares e sociais hegemônicos até então conhecidos ou vi- venciados pelo grupo. O surgimento da comum-unidade em nós foi fruto da escuta da ancestralidade africana e indígena que pulsa na memória do nosso povo e que hoje nos identifica como Kilombolas. Ao se constituir fisicamente em 2002, a Comunidade vai reconhecen- do e fortalecendo a compreensão de que há vida em diferentes formas de existir: há vida na pedra, na madeira, no vento. De que nada no universo existe sem um sentido e um propósito, de que a natureza é interligada, de que a comum-unidade está onde tudo se encontra, onde tudo se relaciona a partir de princípios fundamentais comuns. E o Território vai se tornando eminentemente espiritual e sagrado, onde o agir se define pela unidade e pela interconexão do jeito de ser e de viver e onde tornam-se irmãos aque- les que partilham dos mesmos princípios. A PERCEPÇÃO DE PESSOA Na Comunidade Kilombola Morada da Paz o cuidado se fundamenta através das dimensões bio-mento-espiritual, que constituem a vida. A partir destas dimensões a saúde pode ser preservada, recuperada e expandida. E nesta perspectiva, é necessário compreender a noção de pessoa na CoMPaz. Para nós toda pessoa é um ser integrado a diferentes formas de vida, seres sencientes e, portanto, responsável por esta coexistência. É um ser que vive em unidade, de natureza sensível e coexistente inata a todos os seres, mas que pode ser expandida e cultivada de modo específico pelo

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