Direitos da Natureza: marcos para a construção de uma teoria geral

DIREITOS DA NATUREZA MARCOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA TEORIA GERAL Anna Maria Cárcamo Carla Judith Cetina Castro Chantelle da Silva Teixeira Felício Pontes Jr. Johny Fernandes Giffoni Lucivaldo Vasconcelos Barros Manoel Severino Moraes de Almeida Mariza Rios Monti Aguirre Vanessa Hasson de Oliveira Casa Leiria Organizador Luiz Felipe Lacerda Autores

O Grupo de Trabalho Jurídico (GT Jurídico) é um grupo operativo, de estudos e de incidências concretas, no campo dos Direitos da Natureza – Mãe Terra, composto por juristas e demais profissionais que encontram-se envolvidos em diferentes frentes de atuação como a universidade, a assessoria aos movimentos sociais, organizações sem fins lucrativos que assessoram entes federativos, assim como atores políticos, jurídicos e eclesiais no avanço e implementação destes direitos. O GT Jurídico é um coletivo autogestionado derivativo da Articulação Nacional Pelos Direitos da Natureza – Mãe Terra que iniciou seus trabalhos em 22 de abril de 2020, a partir da união cooperativa entre dezenas de instituições e movimentos sociais que, no âmbito do Fórum Socioambiental de Mudanças Climáticas, compactuam sobre a urgência em enfrentarmos de maneira efetiva os crimes e desastres socioambientais em curso e previstos em nossa sociedade.

DIREITOS DA NATUREZA MARCOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA TEORIA GERAL

DIREITOS DA NATUREZA: MARCOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA TEORIA GERAL ARTICULAÇÃO NACIONAL PELOS DIREITOS DA NATUREZA GRUPO DE TRABALHO JURÍDICO Autores Anna Maria Cárcamo Carla Judith Cetina Castro Chantelle da Silva Teixeira Felício Pontes Jr. Johny Fernandes Giffoni Lucivaldo Vasconcelos Barros Manoel Severino Moraes de Almeida Mariza Rios Monti Aguirre Vanessa Hasson de Oliveira Articulação Brent Milikan Luiz Felipe Lacerda Organização Luiz Felipe Lacerda OBSERVATÓRIO NACIONAL DE JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL LUCIANO MENDES DE ALMEIDA – OLMA Provincial da Província dos Jesuitas do Brasil Pe. Mieczyslaw Smyda, S. J. Secretário para Promoção da Justiça Socioambiental da Província dos Jesuitas do Brasil e Coordenador Nacional do OLMA Pe. José Ivo Follmann, S. J. Secretário Executivo Dr. Luiz Felipe B. Lacerda CASA LEIRIA Ana Carolina Einsfeld Mattos Gisele Palma Haide Maria Hupffer Isabel Cristina Arendt José Ivo Follmann Luciana Paulo Gomes Luiz Felipe Barboza Lacerda Márcia Cristina Furtado Ecoten Rosangela Fritsch Tiago Luís Gil CONSELHO EDITORIAL (UFRGS) (IFRS) (Feevale) (Unisinos) (Unisinos) (Unisinos) (UNICAP) (Unisinos) (Unisinos) (UnB)

DIREITOS DA NATUREZA MARCOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA TEORIA GERAL Luiz Felipe Lacerda (Organizador) Casa Leiria São Leopoldo/RS 2020

DOI: https://doi.org/10.29327/524851.1 Os textos são de responsabilidade dos autores. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Edição: Casa Leiria. Arte da capa: Matheus Ribs. Revisão: Eliana Rose Müller. DIREITOS DA NATUREZA: MARCOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA TEORIA GERAL Luiz Felipe Lacerda (Organizador) Catalogação na publicação Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973

7 SUMÁRIO 9 Prefácio Ivo Poletto 11 Apresentação Luiz Felipe Lacerda 15 Paradigma dos Direitos da Natureza Johny Fernandes Giffoni Manuel Severino Moraes de Almeida Mariza Rios Vanessa Hasson de Oliveira 29 A defesa da natureza em juízo: atuação do Ministério Público Federal em favor do Rio Xingu no caso da construção da Usina Hidrelétrica Belo Monte Felício Pontes Jr. Lucivaldo Vasconcelos Barros 47 O Rio Whanganui e o povo Maori: reconhecimento e garantia dos Direitos da Natureza Monti Aguirre Anna Maria Cárcamo 55 Povo Xukuru vs. Brasil: um paradigma da Corte Interamericana de Direitos Humanos na construção dos direitos territoriais coletivos dos povos indígenas Chantelle da Silva Teixeira 69 Amazônia Colombiana como sujeito de direitos: sentença da Corte Suprema de Justiça da Colômbia Carla Judith Cetina Castro

8 81 Caso do papagaio Verdinho e a transição de paradigma na jurisprudência brasileira Anna Maria Cárcamo 91 Protocolos de Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado no estado do Pará Johny Fernandes Giffoni 105 Resistência e território: os povos tradicionais e a Covid-19 Manoel Severino Moraes de Almeida 113 Tudo está interligado: o rio, a comunidade e a Terra Mariza Rios 131 Direitos da Natureza no Brasil: o caso de Bonito – PE Vanessa Hasson de Oliveira 147 Considerações finais 151 Anexo – Carta pública pela defesa dos direitos da Mãe Terra e pela vida da Amazônia com seus povos 156 Os autores

9 PREFÁCIO Ivo Poletto As organizações, movimentos e pastorais que constituem o Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental – FMCJS decidiram, no Seminário Nacional realizado em novembro de 2019, que, sem deixar de lado as demais atividades previstas no plano de trabalho, deviam ser assumidas duas prioridades: a defesa da vida da Amazônia com seus povos e o reconhecimento dos Direitos da Natureza, a Mãe Terra. As conclusões do recente Sínodo para a Amazônia, reconhecidas e reforçadas pelo papa Francisco através da mensagem Querida Amazônia, indicavam ser indispensável defender os direitos das pessoas e da natureza para salvar a vida da Amazônia com seus povos. E, mesmo antes do Sínodo, a encíclicaLaudato Si’ – o Cuidado da Casa Comum havia motivado o FMCJS a avançar na valorização dos biomas criados pela Terra em todas as ações que visavam seu objetivo permanente: identificar e combater as causas do aquecimento global, dando especial atenção aos afetados/as pelas mudanças climáticas, na perspectiva da construção de sociedades de Bem Viver. A Articulação pelos Direitos da Natureza – a Mãe Terra, que organiza essa publicação, foi constituída por organizações, movimentos e pastorais que acolheram o convite do FMCJS para partilharem a missão de implementar a necessária mobilização para alcançar o reconhecimento desses direitos em todas os âmbitos da vida nacional. E, para isso, provocar um amplo e profundo processo de reeducação, de mudança da cultura dominante assentada sobre a separação entre humanidade e natureza, acolhendo as culturas dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Os povos ancestrais não acham necessário reconhecer juridicamente os Direitos da Natureza, por eles venerada como Mãe Terra. Na sua visão, a Terra é de fato a Mãe do todos os seres vivos que habitam nela e, por isso, o que devemos fazer é perguntar-nos sobre os nossos deveres em relação a ela. Ela informa que cada diferente bioma é espaço vivo e fonte de vida para todos os seres que vivem nela, cabendo aos humanos a missão consciente de cuidar para que isso se mantenha. Mais ainda, seus filhos e filhas devem primar pela igualdade de direitos entre todas as pessoas, honrando assim a sua Mãe. É isso: somos parte da Terra, e só podemos viver se ela continuar viva. A realidade nos mostra, contudo, que não é assim que muitas pessoas se relacionam com a Terra. A educação dominante difundiu uma cultura antropocêntrica, e mesmo androcêntrica, de considerar o ser humano como superior a todos os demais seres, por ser racional e livre, inteligente e criativo. O que se denominou

Ivo Poletto 10 “natureza” foi sendo considerado algo exterior e inferior e, aos poucos, algo a ser apropriado como espaço exclusivo de um grupo ou de uma pessoa, criando uma divisão não autorizada e subscrita pela Mãe Terra. É nesse tipo de sociedade, em que há mercado de terras e a propriedade foi tomando ares de direito absoluto e sem limites por força de leis criadas por instâncias controladas pelos diversos tipos de grandes proprietários, que se torna absolutamente necessário colocar em debate e lutar pelo reconhecimento dos Direitos da Natureza, a Mãe Terra. Afinal, a própria Terra corre o risco de perder sua vitalidade e seu equilíbrio energético por causa da intensidade absurda da sua exploração a serviço dos interesses dos poucos grandes senhores de terra, reforçados pelos poucos senhores das fontes fósseis de energia e dos poucos que, através dos processos de endividamento e especulação, se tornaram senhores da riqueza expressa em moeda e títulos de crédito financeiro. Que este livro nos ajude a avançar na conquista do reconhecimento dos Direitos da Natureza, a Mãe Terra, condição para a vigência real dos Direitos Humanos. Ivo Poletto Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental – FMCJS Articulação Nacional pelos Direitos da Natureza – a Mãe Terra

11 APRESENTAÇÃO Luiz Felipe Lacerda O nascimento do coletivo denominadoArticulação Nacional pelos Direitos da Natureza – Mãe Terra ocorre em 22 de abril de 2020, quando dezenas de instituições, mobilizadas em prol da necessidade efetiva de avançarmos política, social, jurídica e academicamente no enfrentamento ao iminente desastre socioambiental no percurso da humanidade, comprometem-se a trabalhar unidas em prol da Terra e dos seres que nela vivem, alargando concepções sobre o que é o sujeito de direitos no contexto geral de nossa sociedade e também no universo jurídico. A manifestação desta união encontra-se na Carta Pública: Pela defesa dos direitos da Mãe Terra e pela vida da Amazônia com seus povos, anexa a este livro. Derivados desta ampla aliança em prol da Casa Comum originaram-se alguns grupos operativos de trabalho. Coube aoObservatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA) e à Internacional Rivers constituírem o que se convencionou chamar deGT Jurídico . Um grupo de especialistas do mundo do direito, de diferentes regiões do país, que pudesse construir propostas efetivas no campo jurídico e acadêmico, para o avanço dos Direitos da Mãe Terra no Brasil. Assim, buscamos na assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) a sabedoria que construíram ao longo de décadas no trabalho junto aos povos indígenas do Brasil. Buscamos o apoio de colegas doMinistério Público Federal (MPF) e daDefensoria Pública (DP – PA) para garantirmos a percepção jurídica a respeito de todas as populações socioambientalmente afetadas pelo sistema vigente, que protagoniza a mercantilização da natureza e da vida. Não diferente disto e produzindo efetiva interlocução com o mundo acadêmico, contamos com colegas da Escola de Direito Dom Helder Câmara (EDHC–MG) e daUniversidade Católica de Pernambuco (UNICAP), através de suaCátedra de Direitos Humanos Dom Helder Câmara (CDHDHC – UNICAP), que operacionalizam muito bem o conceito de universidades abertas, comunitárias, conectadas com as reais necessidades das populações, promovendo efetivo diálogo de saberes. Por fim, somando-se a este time de especialistas, usufruímos da efetiva colaboração de vozes de organizações da sociedade civil com amplas trajetórias na defesa dos Direitos da Mãe Terra, especificamente da Inter-

Luiz Felipe Lacerda 12 national Riveres , da Plataforma Harmony with Nature da Organização das Nações Unidas e daOSCIP MAPAS . Desta forma, aqueles e aquelas que propõem os Marcos para a construção de uma Teoria Geral dos Direitos da Natureza nas páginas que seguem são pessoas e instituições com legitimidade inquestionável frente a este campo do saber e credibilidade irrefutável entre seus pares e frente a diferentes atores sociais, políticos, acadêmicos e jurídicos. Mesmo assim, compartilham com humildade a certeza de que esta não é uma obra acabada, se não um primeiro passo, dado com firmeza, estudo, prática e convicção, mas apenas um primeiro passo, que convida colegas de diferentes áreas da produção do conhecimento, dos cenários jurídicos, dos contextos políticos e dos campos sociais a unirem-se conosco nesta construção que deve, sem ter outra opção, ser coletiva. O GT Jurídico iniciou seus trabalhos em abril de 2020 e, reunindo-se semanalmente para estudos e debates a respeito de diferentes casos nacionais e internacionais, em que os direitos da natureza lograram avanços, analisando suas características, contextos e estratégias, o coletivo percorreu de forma autogestionada um profundo percurso analítico e propositivo. O livro que se apresenta é o fruto desta caminhada: deste primeiro passo profundo e, caso a caso, pretende-se apresentar alguns dos princípios elementares para a refundação do marco jurídico no que tange os direitos da natureza no Brasil. Começamos este livro, no capítulo 1, apresentando as diferentes perceptivas entre os paradigmas hegemônicos e os paradigmas emergentes no que tangem os direitos da natureza. Desta análise deriva a proposta daquilo que é principiológico na fundação deste novo campo que almejamos construir. Ao final, justificamos o porquê é emergencial almejar esta ruptura e essa reconstrução paradigmática. Na sequência, o segundo capítulo, escrito porFelício Pontes Jr. eLucivaldo Vasconcelos Barros , inicia a apresentação de casos estudados por este grupo de especialistas expondo a atuação do Ministério Público Federal em favor do rio Xingu, no caso da construção da Usina Hidrelétrica Belo Monte. No terceiro capítulo, Monti Aguirre eAnna Maria Cárcamo , da International Rivers, levam-nos à Nova Zelândia para estudarmos o caso do Rio Whanganui e o povo Maori, no reconhecimento e na garantia dos direitos da natureza. ComChantelle da Silva Teixeira , do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), voltamos nossa análise novamente ao Brasil, no quarto capítulo, apresentando e refletindo o caso do povo Xukuru em uma abordagem paradigmática da Corte Interamericana de Direitos Humanos na construção dos direitos territoriais coletivos dos povos indígenas. No quinto capítulo, junto comCarla Judith Cetina Castro, também do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), debruçamo-nos sobre o emblemático caso da Amazônia colombiana como sujeito de direitos na sentença da Corte Suprema de Justiça da Colômbia. Em seguida, no sexto capítulo, podemos compreender um exemplo de mudança paradigmática na jurisprudência brasileira comAnna Maria Cárcamo,

Apresentação 13 da International Rivers, que apresenta o caso do papagaio Verdinho, sob a ótica dos Direitos da Natureza. Os capítulos sete e oito são apresentados, respectivamente, por Johny Fernandes Giffoni , da Defensoria Púbica do Pará, abordando os protocolos de consulta e consentimento prévio, livre e informado; e porManoel Severino Moraes de Almeida , da Cátedra de Direitos Humanos do Helder Câmara/Universidade Católica de Pernambuco, tratando da resistência e dos territórios dos povos tradicionais frente à pandemia da COVID-19. Mariza Rios , da Escola de Direito Dom Helder Câmara, no capítulo subsequente, avança na reflexão sobre os Direitos da Natureza com relação às políticas públicas, à democracia e aos orçamentos municipais, demonstrando que tudo está interligado. Encerrando a etapa de exposições e estudos de casos, o décimo capítulo, escrito porVanessa Hasson de Oliveira , da OSCIPE MAPAS, iluminando-nos através dos casos de Bonito (PE) e Florianópolis (SC), apresenta uma apurada análise de textos legais para aludir aos fundamentos de uma perceptiva promissora aos Direitos da Natureza no Brasil. Todos os casos expostos paulatinamente reapresentam e exemplificam a aplicabilidade dos princípios que fundamentam o marco para a construção da Teoria Geral dos Direitos da Natureza na medida em que cada autor e cada autora, ao longo dos estudos individuais e coletivos promovidos no contexto do GT Jurídico da Mobilização Nacional dos Direitos da Natureza foi convidado (a) a promover este entrelaçamento teórico e prático entre os casos apresentados e esta nova construção a que se propõe esta obra. Temos realmente a expectativa que ela efetivamente ganhe espaço entre as bibliografias obrigatórias no universo da formação jurídica, assim como ofereça subsídio argumentativo aos tomadores de decisões, em prol dos Direitos da Natureza, da Natureza enquanto Sujeito Efetivo de Direitos e, assim, em prol de tudo que vive. Acreditamos que ao ler este livro, refletir e debater as ideias nele expostas, você possa também tornar-se um agente desta transformação paradigmática, por isto lhe desejamos uma boa leitura!

15 1. PARADIGMA DOS DIREITOS DA NATUREZA Johny Fernandes Giffoni Manuel Severino Moraes de Almeida Mariza Rios Vanessa Hasson de Oliveira INTRODUÇÃO No presente capítulo os autores buscam apresentar alguns dos pilares-sustentáculos do paradigma dos Direitos da Natureza como fundamento teórico/ científico capaz de direcionar o modelo de racionalidade utilizada na sistematização das experiências apresentadas nos capítulos seguintes da obra, racionalidade pautada na construção comunitária do saber e do conhecer pela recuperação da tradicionalidade como força propulsora de uma nova interpretação das relações sociais entre seres humanos e entre estes e os demais seres da Comunidade Planetária e, por consequência, uma nova interpretação do Direito diante de uma mudança do paradigma epistêmico com o giro ecocêntrico. Por essa razão, busca-se sistematizar uma linha condutora de uma racionalidade que seja capaz de albergar a pluralidade de saberes constituída pela negação da exclusão dos membros da Natureza não humanos que constituem, em interdependência com os humanos, em sua diversidade social e ecológica, o planeta Terra pela promoção da complementariedade que, ao ver dos autores, passa pela compreensão de que a modernidade é uma realidade inacabada e, nesta, a trajetória do conhecimento regulação se apresenta como a mesma face do colonialismo e, na mesma medida, a pós-modernidade se reconhece pela naturalização da exclusão globalmente produzida pela própria modernidade (SANTOS, 2000; BAUMAN, 2000). Por fim, é possível afirmar que a lógica da racionalidade jurídica diretora deste estudo tem por desafio avançar na compreensão e fortalecimento dos princípios, a partir do giro biocêntrico e de uma ética ecocêntrica e sob a base fundante do paradigma da harmonia com a Natureza, da interdependência, da reciprocidade, da complementariedade e do fazer comunitário em duas direções complementares. A primeira busca a construção formal da Natureza como sujeito de direitos e a segunda tenciona o aperfeiçoamento do equilíbrio entre os pilares da regulação e da emancipação como alimento de uma possível teoria geral dos Direitos da Natureza. DOI: https://doi.org/10.29327/524851.1-1

Johny Fernandes Giffoni, Manoel Severino Moraes de Almeida, Mariza Rios e Vanessa Hasson de Oliveira 16 1.1 PARADIGMA SUSTENTÁCULOS DA LÓGICA DOMINANTE DE SABER, CONHECER E PROMOVER A passagem de um modelo de conhecimento utilitário, baseado na formulação de leis que tem como pressuposto a ideia de ordem e de estabilidade do mundo, cuja centralidade está no privilégio do funcionamento das coisas em detrimento de seus fundamentos, tem como objetivo dominar e transformar, em detrimento da capacidade de compreensão dos fatos e dos fenômenos. O produto dessa lógica do corpo ao paradigma dominante moderno de conhecimento é amplamente estudado por Santos (2000) e, na mesma medida, por Bauman (2000). Os autores apresentam, entre as diversas contradições desse paradigma, a ideia de que o conhecimento científico é apartado do conhecimento comum e, bem assim, a Natureza apartada da pessoa humana. Bauman (2000), relendo os princípios de emancipação e regulação, promessas da modernidade, ocupou-se da dimensão social e, nesse contexto, sustentou que o enfraquecimento da emancipação ficou evidente pelo processo de liquidez da modernidade. Por isso, para o autor a modernidade é líquida porque abandonou a emancipação nas mãos do consumo e do mercado. Boaventura de Sousa Santos, por sua vez, reconhece que o projeto da modernidadenão conseguiu cumprir suas próprias promessas de emancipação e regulação. Assim, priorizou um tipo de racionalidade cuja ordem se constrói no espaço econômico e consumerista, o que exigiu o abandono do princípio do estado e da comunidade deixando o campo aberto para o mercado. Com isso, a regulação sucumbiu a emancipação e, dessa maneira, os pilares regulação e emancipação entraram em colapso, criando um contingente de exclusão sem precedente. A ciência, por sua vez, embarcou nesse modelo de racionalidade (paradigma dominante) produzindo regulação mais regulação, sem a confirmação da emancipação, espaço da cidadania e da comunidade. Nesse paradigma, das ciências modernas, as leis são um tipo de coisa formal com privilégio no funcionamento das coisas totalmente separado de seu fundamento. O que fica evidente é uma diferenciação importante do conhecimento comum, em que a causa e a intenção convivem sem problemas porque a centralidade está na unidade e não na separação. Assim, podemos afirmar que o paradigma moderno e dominante convive com a ideia de que o mundo é uma máquina cujos pilares são a ordem e o progresso econômico a qualquer custo e, por essa razão, temos como resultado dessa lógica um processo de exclusão sem precedente. Isso é que chamamos de crescimento utilitário e funcional, cuja centralidade está em dominar e transformar sem a mínima intenção de compreender (SANTOS, 2000). Os pilares dessa lógica são um modelo de desenvolvimento e conhecimento aprisionados pela ideia de que o mundo somente tem uma chance de existir, a afirmação diária de que a sociedade somente se desenvolve pela lógica do mercado e do consumo e, nesse contexto, desenvolver requer a aceitação de que a ordem e o progresso econômico liberal estãoacima de qualquer suspeita. O conhecimento regulação, nesse contexto, acabou por integrar à sua lógica o conhecimento eman-

Paradigma dos Direitos da Natureza 17 cipação e, assim, a emancipação moderna se confunde com a própria regulação (SANTOS, 2000). Contudo, essa lógica moderna se, por um lado, pelo conhecimento regulação, constituiu a exclusão social, por outro, do encontro com suas próprias contradições, trouxe a presença da possibilidade de outra lógica, o conhecimento emancipação compreendido pela negação da exclusão e, portanto, pela inclusão de todos os seres humanos e não humanos, vivos e aparentemente não vivos, que praticam um natural relacionamento face à interconexão que operam como componentes de um sistema ecológico e que ainda conversa com a dinâmica do sistema social, que se fortalece por uma leitura compartilhada entre os princípios da interdependência, solidariedade, da complementariedade, reciprocidade e do viver comunitário com as diversas práticas sociais e dinâmicas naturais dos elementos da Natureza, que apontam para o fortalecimento do direito, da cultura e da comunidade planetária. Essa racionalidade traz em sua essência duas compreensões principais. A primeiraé a falsa ideia de que a pós-modernidade é o avesso da modernidade. Pelo contrário, ela é a naturalização de uma sociedade humana excludente que sobrevive do aprofundamento da individualidade de seus membros, da invisibilidade do estranho, da alteridade, e da luta perversa contra o exercício da cidadania comunitária. A segunda se alimenta da negação da exclusão social que se concretiza pela necessária vinculação recíproca entre o conhecimento regulação e o conhecimento emancipação. Na mesma seara, a referida racionalidade aponta para a compreensão de que, ao contrário do que objetivava a modernidade, temos o ressurgimento de uma lógica de saber e conhecer pela experiência comunitária construída pelo oposto da modernidade, o individualismo. O que se pretende é “questionar a tentativa falida de impulsionar o desenvolvimento como imperativo global e caminho unilinear, procurando não mais propor alternativas dedesenvolvimento, mas alternativas aodesenvolvimento” (ACOSTA, 2016, p. 85). Portanto, a dicotomia entre sujeito e objeto, entre natureza e cultura, presente nas relações sociais, clama pela lógica da complementariedade, paradigma que apresenta, na mesma medida, o científico social, denominando por Santos (2000) de um conhecimento firmado em dois princípios diretores: a prudência (conhecimento científico prudente) e a decência (vida decente) e, assim, um conhecimento prudente que obrigatoriamente tem que ser social para se chegar a uma vida decente. No mesmo sentido, Acosta ressalta a necessidade de se “aceitar que o ser humano se realiza em comunidade, com e em função de outros seres humanos, como parte integrante da Natureza, assumindo que os seres humanos somos Natureza, sem pretender dominá-la” (ACOSTA, 2016, p. 104). Esse modelo liberal é atropelado por uma crise epistemológica e econômico-social, uma crise civilizatória, que tem uma das maiores expressões na morte da Natureza e, junto com ela, porque dela faz parte como a mais sensível avenca, a população mais pobre é colocada no caixão da exclusão social, econômica e de valores que clamam pela unidade da humanidade com a Terra e com a Natureza, que são impedidos de manifestação porque se assim ocorre tem-se um atropelo na

Johny Fernandes Giffoni, Manoel Severino Moraes de Almeida, Mariza Rios e Vanessa Hasson de Oliveira 18 ordem global de desenvolvimento e, por consequência, no paradigma antropocêntrico dominante que sua existência precisa da morte da lógica da integralidade cuidada pela ideia de que tudo está interligado, a Terra, a humanidade e os demais seres da Natureza. A superação dessa crise ecológica e civilizatória está na ampliação da perspectiva antropocêntrica para incluí-la no paradigma de uma ética ecocêntrica. Gudynas (2015) reconhece os valores próprios dos ecossistemas que vão muito além de seu valor mercadológico enquanto recursos naturais, ultrapassando sua materialidade para incluir valores relacionais que pressupõem a interdependência fundante do sustentáculo da Vida e, ainda, a metafísica dos saberes ancestrais guardados pela tradição, as cosmovisões dos povos originários. Assim sendo, cria- -se uma consciência ambiental capaz de “corroborar para a consolidação de normas centradas na satisfação da dignidade para além do ser humano” (MORATO LEITE, 2015, p. 181). Essa paisagem é exemplificada por Rios (2008) em um estudo da experiência de uma comunidade quilombola, em processo de reconhecimento do território, o qual aponta que a formalidade jurídica ocidental, quando utilizada para regularizar uma comunidade que tem como paradigma o direito comunitário – compreensão de dono (proprietário) de sucessão e coletivo – se apresenta completamente diferenciada da lógica eurocêntrica e, dessa maneira, traz a oportunidade de compreender a contradição dessas duas lógicas, mas que isso mostra ser possível encontrar pontos de diálogo, chamado pela autora como direito do juiz versus direitos da comunidade na resolução de um conflito territorial. Esse cenário, na prática, requer do “estado juiz” a sensibilidade para incorporar às suas compreensões a ideia de pluralidade jurídica e, na mesma medida, a compreensão da comunidade de que o processo de escuta das duas compressões se torna fundamental na afirmação dessa pluralidade. O resultado do estudo confirma a possibilidade de equilíbrio entre regulação e emancipação. É nesse contexto que dedicamos o item seguinte, paradigma sustentáculo da racionalidade emergente de saber, conhecer e promover. 1.2 PARADIGMA SUSTENTÁCULOS DA LÓGICA EMERGENTE DE SABER, CONHECER E PROMOVER Agamben (2019, p. 41) chama atenção da existência de traços capazes de definirem o paradigma. Consiste o paradigma em forma de conhecimento, não se apresentando como um conhecimento “nem indutivo, nem dedutivo, mas analógico”, movendo-se de singularidade para singularidade. Da mesma maneira, possibilita a neutralização da dicotomia estabelecida pela “racionalidade do sistema mundo moderno colonial” (MIGNOLO, 2016), que ocorre entre o geral e o particular, substituindo essa lógica dicotômica por um pensamento fundamentado no modelo analógico bipolar.

Paradigma dos Direitos da Natureza 19 Outro traço importante é que o caso paradigmático “se torna tal suspendendo e, ao mesmo tempo, expondo seu pertencimento ao conjunto, de forma que nunca é possível separar nele exemplaridade e singularidade” (AGAMBEN, 2019, p. 41). Por consequência, a ciência moderna e as suas teorias críticas não romperam ou desconstruíram os paradigmas que fundamentaram a imaginação modernista da “humanidade como totalidade construída com base num projeto comum: direitos humanos universais” (SANTOS, 2019b, p. 42). Se os direitos são “humanos” e “universais”, todos são iguais, não possuindo “diferenças” e devendo a “humanidade” proteger e garantir os “humanos” dentro dos paradigmas e das racionalidades que denominaremos de “coloniais”. Porta-se em suas faces econômica e instrumental como pilar do processo civilizatório moldando relações do corpo social com a “natureza”. Reproduz, assim, a “racionalidade científica e tecnológica que busca incrementar a capacidade de certeza, previsão e controle sobre a realidade, assegurando uma eficácia crescente entre meios e fins” (LEFF, 2015, p. 136), necessidade de um domínio da “natureza” e sua total “subjunção”. A lógica emergente de saber, conhecer e promover enquanto “paradigma” tem na “racionalidade ambiental” um de seus pilares, subdividindo-se, nas palavras de Leff (2015, p. 137), em quatro esferas: Racionalidade substantiva; Racionalidade teórica; Racionalidade instrumental e Racionalidade cultural. Desse modo, “o conjunto paradigmático nunca é pressuposto aos paradigmas, mas permanece imanente a eles” (AGAMBEN, 2019, p. 41). Essas racionalidades enquanto “paradigmas” são capazes de “desconstruir” (DERRIDA, 2001, p. 48), invertendo a lógica das necessidades e hierarquias construídas no bojo da racionalidade do sistema mundo moderno e colonial. Descontruir essa racionalidade significa admitir os traços do paradigma levantados até aqui por Agamben, reconhecendo que o modelo colonial baseia-se na distinção entre as exclusões não abissais – tensões e exclusões entre os indivíduos, porém não colocam em questão a equivalência e reciprocidades básicas –; e as abissais – tensões e exclusões de alguém que não é humano, campo da inexistência da equivalência e da reciprocidade (SANTOS, 2019b, p. 43). Indígenas, quilombolas, povos tradicionais, ribeirinhos vivem no mundo do “eles” e não possuem nenhuma relação com a “racionalidade”, pois são irracionais, bárbaros, subdesenvolvidos e precisam abandonar a “natureza”, pois lá é o local do “irracional”. Se a “natureza” é objeto na racionalidade do sistema mundo moderno e colonial e as pessoas lá estão, o estão porque são irracionais e assim devem ser “assimiladas” e “aculturadas”. Ressalta-se que “os direitos humanos convencionais, enquanto parte da modernidade ocidental, têm como limite ontológico a impossibilidade de reconhecer a plena humanidade dos sujeitos que se encontram abissalmente excluídos” (SANTOS; MARTINS, 2019, p. 22). Admitir que as “monoculturas” não são capazes de resolver os problemas criados pela modernidade, como o fim da pobreza e das desigualdades, significa, em primeiro lugar reconhecer a existência de “pluralidades” e diversidades do “ser humano”, não contempladas pelos direitos humanos convencionais.

Johny Fernandes Giffoni, Manoel Severino Moraes de Almeida, Mariza Rios e Vanessa Hasson de Oliveira 20 Por conseguinte, “a compreensão ocidental da universalidade dos direitos humanos não consegue conceber que existam princípios diferentes sobre dignidade humana e a justiça social” (SANTOS; MARTINS, 2019, p. 22). A luta pelo reconhecimento das “identidades” na América Latina e pelo “pluralismo” da experiência jurídica, social, econômica e cosmológica, além do “pluralismo” enquanto possibilidade de reconhecimento das diferenças, pode ser notada em Constituições Latino Americanas a partir da década de 1980. Destaca-se a luta dos movimentos sociais emergentes que “estão gestando novos direitos – ambientais, culturais, coletivos - em resposta a uma problemática ambiental que emerge como uma crise de civilização, efeito do ponto de saturação e do transbordamento da racionalidade econômica dominante” (LEFF, 2015, p. 346), edificando um novo espaço político e novas racionalidades sob suas identidades étnicas e cosmologias. Segundo Leff (2015, p. 346), “o processo de modernização, guiado pelo crescimento tecnológico, apoiou-se num regime jurídico fundado no direito positivo, forjado na ideologia das liberdades individuais, que privilegia os interesses privados”. Por outro lado, os movimentos sociais emergentes, orientados pela desconstrução das ideologias de monoculturas, ergueram-se na institucionalização de leis e instrumentos normativos, reconhecendo, em um primeiro momento, pluralidades, e depois que pudessem reconhecer o pluralismo jurídico. Segundo Fajardo (2009), nos últimos 25 anos a América Latina vivenciou três ciclos de reformas constitucionais, em que se nota a garantia de direitos plurais e multiculturais. O primeiro ciclo da “Reforma Constitucional Multiculturalista” teve início nos anos oitenta do século XX, caracterizando-se pela “introdução do direito – individual e coletivo – à identidade cultural, junto com a inclusão de direitos indígenas específicos” (FAJARDO, 2009, p. 25). Evidencia-se que, no limiar do primeiro para o segundo ciclo proposto por Fajardo, temos a criação, pela Organização Internacional do Trabalho, da Convenção n. 169 que reconheceu aos povos indígenas e aos povos tribais “direitos a terra e território, e o acesso aos recursos naturais; reconhece o próprio direito consuetudinário, assim como direitos relativos ao trabalho, saúde, comunicações, o desenvolvimento das próprias línguas, educação bilíngue intercultural, etc.” (FAJARDO, 2009, p. 21). Entre o primeiro e o segundo ciclo está o Brasil, cuja reforma constitucional antecedeu em um ano a adoção da Convenção 169 da OIT, reconhecendo algumas das concepções positivadas na ordem internacional, como o direito à autodeterminação e da pluralidade de organização social, cultural e econômica dos povos etnicamente diferenciados como indígenas e quilombolas. No tocante à Natureza, a Constituição assumiu uma posição pelo “antropocentrismo alargado” ao considerar o ambiente “como bem de uso comum do povo, atribuindo-lhe inegável caráter de macrobem. O art. 225 estabelece uma visão ampla de ambiente, não restringindo a realidade ambiental a mero conjunto de bens materiais (florestas, lagos, rios)” (MORATO LEITE, 2015, p. 169). O segundo ciclo ocorre durante os anos noventa do século XX, incorporando direitos contidos na Convenção 169 da OIT. Para Fajardo, este ciclo “afirma o direito (individual e coletivo) à identidade e diversidade cultural, já

Paradigma dos Direitos da Natureza 21 introduzido no primeiro ciclo”. Entretanto, desenvolve um conceito mais amplo de “nação multiétnica” e “estado pluricultural” (2009, p. 26). Tais Constituições passaram a qualificar a natureza do povo, avançando rumo ao caráter do Estado, reconhecendo o “pluralismo jurídico, assim como novos direitos indígenas e de afrodescendentes” (FAJARDO, 2009, p. 26). Devemos levar em conta que “a Constituição não é apenas o documento jurídico mais político de todos e o documento político mais jurídico de todos” (ACOSTA, 2016, p. 153). À vista disso, temos o terceiro ciclo de “Reforma Constitucional Multicultural” que ocorreu durante a primeira década do século XXI. Sua principal característica foi a institucionalização do “Estado Plurinacional” da Bolívia (2007/2008) e do Equador (2008), fundamentado em um “modelo de pluralismo legal igualitário, baseada no diálogo intercultural” (FAJARDO, 2009, p. 27). A luta entre a racionalidade encampada pelos movimentos sociais emergentes e a “modernidade ocidental como um paradigma fundado na tensão entre regulação e emancipação social” (SANTOS; MARTINS, 2019, p. 20), passa pela desmercantilização dos Direitos da Natureza, afastando qualquer construção teórica, negando sua existência em si, onde somente terá valor quando inserida na racionalidade econômica (ACOSTA, 2016, p. 120). Assumem os povos da floresta, indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outros tradicionais o valor comunitário, sendo todos parte integrante da Natureza, não possuindo qualquer intenção de dominação (ACOSTA, 2016, p. 104). Na mesma medida, a Constituição do Equador ao reconhecer o Direito da Natureza: [...] considera-se pioneiro neste domínio o artigo 71 da Constituição do Equador de 2008, um artigo vinculado à filosofia da natureza dos povos indígenas. Para os povos andinos, a natureza, longe de ser um recurso natural incondicionalmente disponível e apropriável, é a terra mãe ( Pachamama em quéchua), origem e fundamento da vida e, por isso mesmo, centro de toda a ética de cuidado (SANTOS, 2019a, p. 54). Sendo a “mãe terra” aquela que dá a vida e a existência, é concebida como sendo representada por pessoas, comunidades, povos e nacionalidades (ACOSTA, 2016, p. 131). Ao contrário do que fora estabelecido pela Constituição da Bolívia, os Direitos da Natureza na Constituição Equatoriana foram previstos explicitamente, sendo orientados a resguardar os “ciclos vitais e os diversos processos evolutivos, não apenas as espécies ameaçadas e as reservas naturais” (ACOSTA, 2016, p. 132). A Constituição Boliviana inclui a chamada “sociologia das ausências” ao incluir os conceitos de Pachamama e fazendo referência aos conhecimentos e à organização social indígenaSuma Qamaña (vivir bien) (SANTOS, 2019a, p. 54). Os movimentos sociais emergentes possuem um caráter policlassista, reconhecidos pelo seu caráter assemblear e direcionados pela busca do reconhecimento de sua autonomia. Estabelecem processos de diálogo entre saberes e disciplinas, por meio da tradução dos conhecimentos elaborados independentemente dos discursos dominantes e dos discursos dos especialistas. Orienta-se, na valorização dos saberes locais, que tem sua fonte na relação de Indígenas, Campesinos, Qui-

Johny Fernandes Giffoni, Manoel Severino Moraes de Almeida, Mariza Rios e Vanessa Hasson de Oliveira 22 lombolas, Raizeiros, Afrocolombianos, e outros grupos etnicamente diferenciados com o universo da Natureza e sua cosmologia enquanto ciência (SVAMPA, 2012, p. 20). Protocolos Autônomos ou Comunitários de Consulta e Consentimento de Povos Indígenas e Quilombolas, Planos de Vida, Reconhecimento daPachamama como sujeito de Direitos, Reconhecimento de Territórios e Territorialidades na esfera judicial interna dos países Latino-americanos ou no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos representam estratégias de desconstrução da modernidade ocidental e de seu paradigma regulação e emancipação social. O conhecimento produzido nas lutas e nos conflitos vivenciados pelos movimentos é capaz de induzir a racionalidade ambiental enquanto paradigma da hermenêutica jurídica emancipatória. Santos entende ser possível construir essa racionalidade por meio das ecologias de saberes, que seriam formas cognitivas de construções coletivas que estariam orientadas por “princípios da horizontalidade (diferentes saberes reconhecem as diferenças entre si de um modo não hierárquico) e da reciprocidade (diferentes saberes incompletos reforçam-se através do estabelecimento de relações de complementariedade entre si)” (2019b, p. 124). Conclui-se que a racionalidade emancipatória traz em seu cerne o alargamento do Pluralismo Jurídico, reconhecimento de estatutos diversos, para o que Santos (2019b) denominou de Pluralidade Jurídica, cuja centralidade se adequa ao processo democrático de decisão que tem por consequências não somente o reconhecimento da diversidade cultural e modo de vida, mas também a possibilidade de diálogo entre essas diferenças, capaz de se obter resultado coletivo. E, mais que isso, a pluralidade reconhece que todos são sujeitos de direitos a humanidade, a natureza e a terra e, assim, não se pode conceber a natureza como propriedade de quem quer que seja. Nesse contexto, recuperar os princípios nucleares dos direitos da natureza torna-se imprescindível; assim, o item a seguir assume a tarefa dessa recuperação. 1.3 PRINCÍPIOS DOS DIREITOS DA NATUREZA A formulação de uma teoria geral que pretende a construção dos Direitos da Natureza parte da descrição de princípios que se fundam na própria dinâmica da Natureza e se legitimam na conformação natural do sistema da Vida. Para além do comportamento ecossistêmico, considera o sistema menor da vida social humana que inclui o elemento da interculturalidade e da territorialidade. Nesse resgate principiológico, a dinâmica social é multiversada e inclui a metafísica das manifestações do encontro entre a materialidade da vida e a cultura, a bioculturalidade, de forma que está vinculada no evoluir histórico das comunidades, na linha do tempo das civilizações e se dá inter-relacionada às cosmovisões originárias nas quais a Terra não é um planeta, é a grande Mãe, assim conformando a “ Pachamama ”, a “ macropacha ” e as interações bioculturais que se dão no seio da comunidade, a “micropacha” (FERNÁNDEZ LLASAG, 2018).

Paradigma dos Direitos da Natureza 23 Assim como as mães humanas, Mãe Terra é aquela dotada da inigualável função material e espiritual de prover e manter a teia da Vida, oferecendo território para o caminhar, alimento para nutrir, energia mantenedora das relações e conexões que encadeiam a teia da Vida de maneira naturalmente harmônica entre o caos e a ordem, entre o viver e o morrer, que transmuta e faz o céu permanecer em pé, gerando e regenerando. (OLIVEIRA, 2020). Nesse universo, a harmonia com a Natureza é o princípio dos princípios, a amálgama de outros princípios que seguem em estreita observação da abundância criadora da “ Pachamama ”, a complementariedade de opostos e do terceiro incluído que, por sua vez, são desdobráveis do princípio da relacionalidade ou reciprocidade. O paradigma da Harmonia com a Natureza, tecido a partir de uma percepção plural, multirrelacional e simbiótica da vida, apoiado nos princípios de comunidade e de complementariedade de opostos, integrado pela consciência da Vida (MORAES, 2018). Disso decorre que há uma interdependência visceral no sistema maior da Vida, a “ Pachamama ”, que se desdobra desde as relações microscópicas entre si e destas com os demais seres da teia, sendo o Coronavírus (SARS-CoV-2) sua maior expressão, até as relações imanentes das energias dos elementos naturais, físicas e telúricas e das cósmicas. O resultado da harmonia na Natureza, tendo em vista a condição de interdependência, depende da realização da reciprocidade na medida da complementariedade em que se dão as relações, desde as interações biológicas até o matrimônio que se dá no nível cósmico que tudo gera (BOFF, 1981). Na perspectiva das comunidades, dos povos originários, os complementares são o sustentáculo da vida, a partir do feminino da Mãe Terra que é preenchido na comunhão com o masculino do Pai Sol. Na perspectiva das pulsões humanas, a complementariedade não passa despercebida na comunicação do que é exterior ao sistema, mas que com ele faz uma unidade maior. O ser humano pós-moderno volta a perceber, da memória ancestral universal, algo que o toca desde sua célula original. De que viver propriamente não consiste simplesmente em viver, mas em conviver com todas as outras coisas animadas e mesmo as supostamente inanimadas. De que o que se opera no mundo exterior se reflete no seu mundo individualizado interior. A relacionalidade, assim, opera de forma tendenciosa a complementar e a reciprocidade consiste em ter internalizada a consciência de que a doação será ofertada e a contrapartida que parte de sua ação individual é certa, porque faz parte natural ao comportamento sistêmico que, se não sofrer intervenções daquilo que está fora, se opera no fluxo natural. E é no entorno deste sistema total, no âmbito mundial, planetário, onde se situa a natureza, que se não tiver reconhecida na totalidade dos sistemas sociais parciais – isto é, do direito, da política, da economia, da educação, da religião etc. - sua dignidade própria, com os direitos daí decorrentes, tal como aqui Vanessa Hasson de Oliveira convincentemente postula, vai ser solapada a base mesma de sustentação em que se assenta o sistema social total, com sua subsequente derrocada (GUERRA FILHO apud OLIVEIRA, 2016).

Johny Fernandes Giffoni, Manoel Severino Moraes de Almeida, Mariza Rios e Vanessa Hasson de Oliveira 24 Toda essa relacionalidade, por sua vez, tem como centro o paradigma comunitário, no qual as relações se dão em respeito à interculturalidade e com orientação horizontalizada. Parte-se do dado real de que a comunidade humana comunga de uma mesma unidade, com(un)idade, com os demais membros da comunidade planetária, a Casa Comum, como sublinhado por Francisco em sua Carta EncíclicaLaudato Si’ (FRANCISCO, 2015). O ser humano possui a capacidade de estar inserido na comunidade maior, aquela planetária, e é porque aí se encontra com os outros de sua espécie humana e demais membros da coletividade planetária, sendo com e entre eles, sendo, portanto, a própria unidade. A condição de membro de uma comunidade pressupõe a condição de perda da individualidade e paradoxalmente justifica a existência do indivíduo, na medida em que somente é se está entre e com os outros membros. Para tanto, o indivíduo precisa ser aberto com o outro “no es simplemente ni ante todo generosidad, amplitud en la hospitalidad y largueza en el don, sino en principio da condición de coexistencia de singularidades finitas ‘entre’ las cuales – a lo largo, al borde, en los limites, entre <afuera> y <adentro> circula indefinidamente la posibilidad de sentido” (ESPOSITO apud OLIVEIRA, 2016). O que une os membros de uma comunidade e, assim, a constitui, é uma ausência, um dever de uma só via de indivíduo para indivíduo; é o outro o que caracteriza o comum. Não é o que é próprio, mas o que é impróprio, o outro. Como consequência, o indivíduo é desapropriado de sua subjetividade e forçado a sair de si mesmo e se deslocar ao outro. O paradigma comunitário, ainda na perspectiva das comunidades andinas, é de estética circular e procura centrar sua lógica no princípio do bem viver (bien vivir) ou viver bem (vivir bien), o sumak kawsay ou suma qamaña. Foi com base nesse entendimento principiológico que, durante o período de confinamento social, pesquisadores dos direitos da Natureza publicaram o Manifesto Harmonia, no qual se declara que: [...] a partir de perspectivas interculturais, transdisciplinares, pluriversalistas, rizomáticas, espirituais, contemplativas e estéticas e cantaremos com os caminhos para a Harmonia e o Bem Viver e para uma política comunitária-participativa; os valores e princípios da ética ecológica e do Direito Ecocêntrico; os direitos da Mãe Terra, de Pachamama e os Direitos da Natureza (AITH et al. , 2020, on-line ). Reconhecimento este que nos leva ao anúncio de uma possível teoria dos Direitos da Natureza. É do que tratamos a seguir. 1.4 EMERGÊNCIAS DE UMA TEORIA GERAL DOS DIREITOS DA NATUREZA A Teoria Geral dos Direitos da Natureza fundamenta-se no princípio da Harmonia com a Natureza, da Interdependência, da Reciprocidade, da Comple-

Paradigma dos Direitos da Natureza 25 mentariedade e do Fazer comunitário. O princípio da Harmonia com a Natureza encontra-se previsto no artigo 312 da Constituição da Bolívia, que estabelece a necessidade de um modelo de economia plural, e os processos de industrialização e exploração de recursos naturais deve por ele se orientar. O princípio da reciprocidade consiste na relação entre a natureza e os seres humanos, inclusive no sentido de renúncia a subjunção da natureza pelos seres humanos, como sendo uma mercadoria. A lei boliviana n. 71 de 2010 estabeleceu os Direitos da Mãe Terra, no art. 7.º previu o princípio da interdependência e da complementariedade dos componentes da “Mãe Terra”, sendo necessária sua observância para que o equilíbrio para a continuação dos ciclos de reprodução dos processos vitais seja respeitado. Estabelece ainda a referida lei, no artigo 5º , a definição da “Mãe Terra” como sendo um sistema vivo e dinâmico formado por uma comunidade indivisível de todos os sistemas de vida e dos seres humanos, todos inter-relacionados, interdependentes e complementares, compartilhando um destino comum. A jurisprudência da natureza pode ser identificada internacionalmente com o aumento da cidadania ambiental e uma cosmológica holística integradora dos ecossistemas. Trata-se de uma virada na chave de interpretação do direito como prática social e, portanto, capaz de responder e assegurar a dignidade dos componentes que formam a complexidade da vida e existência do ser humano na terra. A epistemologia desse ramo do direito propõe uma metodologia própria e um objeto jurídico autônomo por se tratar de um fenômeno identificado com princípios gerais e teleológicos presentes nos diversos sistemas jurídicos no mundo contemporâneo, pelos países ou nas comunidades tradicionais. Estes povos tradicionais defendem uma ideia de pessoa não associada a uma razão positiva, mas a uma relação dialógica e constitutiva da identidade de cada sociedade. Logo, os rios contêm o espírito de seus antepassados, é uma dádiva colher frutos e semear os campos. O novo constitucionalismo latino-americano positivou e permitiu demandas com decisões na Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, consolidando teses que fundamentam uma teoria ou teorias dos direitos da natureza. Esta abertura é um norte do pensamento descolonial e de superação antropocêntrica. Em se tratando da primeira sentença não antropocêntrica da CIDH, esta data de 6 de fevereiro de 2020 e reconheceu a proteção dos direitos dos povos indígenas, no caso “Comunidade Indígena Membros da Associação Lhaka Honhat (Nossa Terra) vs. Argentina”. Esta é a primeira vez que o tribunal em sua jurisdição e convencionalidade criou um precedente sobre os direitos à água, alimentação, meio ambiente saudável e identidade cultural1 . Outro precedente importante ocorreu na Austrália, a Lei da Proteção do Rio Yarra (Wilip-gin Birrarung murron) promulgada em 1º de dezembro de 2017. O repositório reconhece legalmente os Yarra como uma entidade viva e indivisível. Reconheceu o direito tradicional da propriedade dos povos tradicionais do Rio Yarral. 1 ONU. Harmonia com a Natureza. Disponível em: http://www.harmonywithnatureun.org/rights OfNature/. Acesso em: 21 ago. 2020.

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