A capoeira joga com a dureza da vida

16 SÉRIE SABERES TRADICIONAIS – VOL. 4 A atuação na universidade permitia manter-me refletindo concomitantemente em outros espaços em que se fazem presentes sujeitos formados pela capoeira e comprometidos em desvelar e reparar as injustiças e distorções históricas cometidas contra a resistência e lutas do povo negro. A reflexão propositiva de Nilma Lino Gomes (2017) sintetiza tal possibilidade e exigência com a elaboração de novos conhecimentos e uma nova forma de escrever sobre o povo negro: É possível observar que jovens negros que participam de processos de ações afirmativas tendem a estabelecer relação diferente com sua corporeidade. Há, então, a produção de outro saber sobre o corpo, que passa a ser compartilhado com pessoas de outros segmentos étnico- raciais e a ser notado pelas famílias. De certa forma, há uma ocupação do corpo negro nos espaços que antes não estavam acostumados a lidar com tal corporeidade (GOMES, 2017, p. 115). Portanto, a experiência como estagiário docente na disciplina Afrodescendência e Cidadania no Brasil Contemporâneo (2018/1) expandiu meu interesse em trabalhar com autores que abordam a questão de raça e racismo através de uma perspectiva antropológica. A confluência entre as considerações de autores como Frantz Fanon (1968) e Achille Mbembe (2014), que apontam para a Europa como criação de povos africanos escravizados que protagonizaram a constituição da modernidade ao desempenharem diferentes papéis para a consolidação dos impérios português e espanhol na América Latina, são de extrema relevância, pois o pensamento moderno edificou-se na invenção de um outro tempo evolutivo. Nesse processo de “efabulação”, como propõe Mbembe (2014), “o hemisfério ocidental inventou para si e para os seus o direito de ser gente”, a referência de sofisticação nos costumes, religião, enfim, um ser humano ideal. Através da escravidão negra, o horizonte europeu ampliou-se mundialmente, ao mesmo tempo em que o princípio de raça foi ligado diretamente ao símbolo de um capital e, dessa forma, projetou massivamente negros e seus descendentes a reprodutores de mão de obra para os detentores do capital, garantindo assim o privilégio branco, representado nos diferentes espaços de poder através dos tempos. Apesar disso, sempre houve resistência.

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