283 A segunda escravidão: o retorno de Quetzalcoatl? é, a forma como movimentos diversos de expansão material e financeira se integram em escala planetária, em função da reprodução incessante do capital. Mas, mesmo mudando um pouco a chave, a forma de pensar ainda preserva a sua validade. No Brasil oitocentista, nem todas as relações de escravidão estavam na ponta de lança da economia agroexportadora, nem assumiam a forma da segunda escravidão. Era possível encontrar condições de produção, ritmos de trabalho, modos de vida, oportunidades de alforria, padrões de propriedade e de posse bastante variáveis. No entanto, a constatação de que coexistiam modalidades distintas de exploração do trabalho escravo (o que está longe de ser novidade na historiografia) não deve acarretar a presunção de que havia uma espécie de impermeabilidade. Todas integravam uma mesma dinâmica histórica. A macropolítica imperial, as leis e normas que regulavam o cativeiro, a flutuação dos preços dos escravos, a circulação e as redes do tráfico transatlântico e do comércio interno de cativos, as pressões internacionais ao país eram elementos que combinavam as diferentes práticas naquele contexto (Silva Jr., 2015, p. 24-25). O meu ponto de chegada não é defender que a escravidão brasileira do século XIX só possa ser analisada à luz da segunda escravidão, mas afirmar que a concepção pode sustentar uma agenda de pesquisa renovada, que venha a iluminar novos aspectos, especialmente a combinação e a permeabilidade assinaladas. Isto será possível caso haja uma sofisticação do emprego da categoria, mediante o diálogo com abordagens como a Micro-História, que o próprio Dale Tomich propôs, mas ainda não realizou. Trata-se, antes de mais nada, de reduzir a escala do procedimento metodológico que já fundamenta a perspectiva da segunda escravidão (mas sobretudo nas relações interestatais desenroladas nos quadros da economia-mundo), qual seja, a reconstrução analítica do todo por meio de um exame integrado de suas partes. É o que Philip McMichael denominou comparação incorporada (1990, p. 385-397). Este procedimento não projeta o governo das partes pelo todo. O nexo entre partes e todo não é pressuposto, mas o resultado do estudo. Nessa perspectiva, cada parte representa e carrega em si uma certa configuração geo-histórica, com particularidades quanto aos ritmos de tempo e à territorialidade, integrando-se, em diferentes níveis, a processos de ordem nacional e global, pela via da cultura, da política e da economia. Assim, por exemplo, compreende-se a escravidão no Vale Amazônico como um complexo específico integrado a um conjunto mais vasto, e não, meramente, como a manifestação local da segunda escravidão em todos os seus aspectos (Barroso; Laurindo Junior, 2017, p. 568-588). Os níveis e os efeitos dessa
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