281 A segunda escravidão: o retorno de Quetzalcoatl? Com efeito, a segunda escravidão representa o fantasma dos natais passados de toda uma geração de pesquisadores ainda ativos e de seus continuadores. Incorporar tal conceito e a perspectiva analítica subjacente desponta no horizonte como uma forte ameaça de retrocesso, uma capitulação diante de um inimigo que há décadas dava-se como vencido, o soterramento dos protagonismos individuais e das especificidades regionais frente aos imperativos da economia-mundo capitalista e dos avanços das fronteiras das mercadorias de exportação. Seria algo como o retorno de Quetzalcoatl para tomar de volta seu reino das mãos dos mexicas. 13 Cumpre destacar que o texto original de Dale Tomich, publicado em 1988, A “segunda escravidão” , é um (curto e denso) estudo de história econômica, que situa o trabalho escravo nas transformações do capitalismo, na Era Industrial, considerando essencialmente o remanejamento da produção de commodities com sua alocação maciça e inédita no sudeste do Brasil (café), no ocidente da ilha de Cuba (açúcar) e no Sul dos Estados Unidos (algodão). Não leva em conta a multiplicidade de relações de escravidão nas macrorregiões ou o peso de outras esferas da realidade, como a política, o direito e a cultura. Muito menos reflete sobre o campo de possibilidades para a ação dos sujeitos históricos no novo contexto descrito. Aí está o fundamento de toda a desconfiança. Em sua formatação original e mesmo em estudos posteriores que exploraram a perspectiva, o conceito deu conta unicamente das zonas de plantação mais dinâmicas, capitalizadas e diretamente articuladas ao movimento da economia global, o que representa somente uma fatia do mundo da escravidão (Tomich; Marquese, 2009, p. 339-374). Apenas para pensar no caso nacional, como ficaria a escravidão urbana e portuária, a produção com pequenas escravarias voltadas para o abastecimento em Minas Gerais ou a indústria baleeira de Santa Catarina? Nada disso estaria contemplado, ou melhor, não poderia ser explicado pela elaboração de Tomich. Mesmo porque os contornos daquelas outras formas do cativeiro em geral coincidiam com as práticas ancestrais do escravismo colonial, ou de uma pressuposta primeira escravidão , ao menos até o momento de crise da instituição. Mas, então, a crise per se poderia ser tomada como o fator transformador e, não, propriamente, o movimento da segunda escravidão. 13 Numa das versões sobre o comportamento de Moctezuma II em relação aos conquistadores, em 1519, ele teria confundido Hernán Cortés comQuetzalcoatl, o mítico príncipe tolteca que estaria voltando para recobrar os domínios que antes lhe pertenciam. Evidentemente, esta minha menção tem um fundo absolutamente alegórico.
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