230 A Segunda Escravidão e o Império do Brasil em Perspectiva Histórica que equivale a dizer que a coisa real se torna ela mesma seu próprio princípio, em uma interpretação que denota a pedra angular do pensamento existencialista. Disso decorre que a história não é pura contingência – há um princípio –, porque ela expressa, em seu desenrolar, uma inteligibilidade – principalmente dialética – feita pela contradição. Para Jean-Paul Sartre, todas as finalidades são contrafinalidades, e todos os movimentos da matéria, seja no sentido da continuidade ou da ruptura, revelam contradições sustentadas e dirigidas pelos homens – e mulheres. Em um esforço para dar saída libertária ao estruturalismo característico de sua época, a dialética de Sartre propunha uma história sempre realizada por seres de carne e osso, que, em seu relacionamento conflitivo, projetam por interiorização da práxis pretérita uma nova práxis exteriorizada. Trocando em miúdos, na própria realização da contradição estaria o balão de oxigênio ao inferno que são outros. 3 Uma via de escape, no entanto, circunstanciada pela contradição que a possibilitou e limitada, por extensão, por aquela que será seu produto. Eventos históricos, diria Sartre, terminam sempre em uma indecisão, porque as soluções obtidas em síntese não são apenas originárias de um grupo, mas a decorrência de um tolhimento à ação de um grupo em relação a outro. Expectativas sempre frustradas, portanto, visto que o resultado da contradição escapa a cada parte. O grupo social, no sistema de pensamento considerado, faz as vezes do motor da história, na medida em que nele se manifestam tanto as condições da ação histórica – o prático-inerte – quanto as possibilidades dessa ação – o projeto e a luta. Sartre nega que o grupo impeça a realização de um destino individual – cada um vive sua vida particularmente, sugere naCrítica da razão dialética –, mas, ao mesmo tempo, considera que essa realização está circunscrita a um campo restrito de possibilidades, onde a própria experiência individual produz o ser de grupo. A ampliação das margens que constringem o grupo sujeita-se, a seu turno, à efetivação da classe na práxis. Isto é, ultrapassar a condição de grupo significa realizar a própria classe, em uma trama de finalidades e contrafinalidades de classe, que deglutem as de indivíduo. Daqui emerge talvez o principal limite da proposta de Tomich. Ao distinguir o objeto de observação da unidade de análise, o que implica um recuo reflexivo incompatível com a razão dialética, a segunda escravidãosubsome as relações formativas desta pelo prisma daquele. Em 3 A expressão, assim formulada, aparece em outra obra de Jean-Paul Sartre: a peça de teatro Huis Clos , A portas fechadas , em português.
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