Ecologia Integral: abordagens (im)pertinentes - volume 1
José Roque Junges 86 porque a sua atribuição comum irá exigir a definição do pertencimento, da apropriação ou da possessão comum desses bens. Essa atribuição sempre incluirá separação, exclusão e discriminação, pois permite uma seleção de quem participa do comum. Por isso, a natureza não deveria ser concebida como bem comum ou como conjunto de bens comuns, já que ela não é algo que se possa possuir ou apropriar-se. Na base da compreensão da natureza como conjunto de bens comuns está a visão redutiva da natureza como estoque de recursos. Quando, ao contrário, a natureza for concebida como um fundo de serviços vitais, responsável pela criação das condições para que a vida possa existir, ela não é um bem apropriável, mas uma casa comum (oikos) na qual todos vivemos e da qual todos participam indistintamente. Portanto, o comum rege-se pela lógica da recepção e não da apropriação. Todos os seres vivos, inclusive os humanos, encontram-se dados e recebidos, como participantes desse fundo que é a natureza. Antes de qualquer opção ou decisão, os seres humanos se dão conta de sua recepção e participação comum nas condições vitais que a natureza como fundo lhes fornece. Em geral, os humanos têm dificuldade para essa tomada de consciência, porque foram educados e capturados pelo sistema econômico de que tudo tem que ter um preço e esse serviço comum da natureza não é possível precificar. Essa mesma reflexão pode ser feita em relação à saúde, assumindo a perspectiva de um comum não identitário, negando as razões excludentes do mercado, para formular ações e políticas de prevenção, proteção e pro- moção da saúde da população em uma situação ameaçadora de pandemia. A saúde depende antes de nada de condições ambientais e sociais, de possi- bilidades para sua reprodução e não, primordialmente, de bens de consumo oferecidos pelo mercado como mercadorias que prometem saúde. Assim, a saúde em tempos de pandemia deve ser pensada na lógica da recepção (comum/público) e não da apropriação (individual/mercado). Para mostrar a diferença entre as duas lógicas, pode-se tomar como exemplo a questão da seleção para o acesso a respiradores nessa situação de pandemia. Os critérios oferecidos, em geral, são compreensíveis na lógica da apropriação indivi- dual, quem pode se apropriar de um respirador, cuja dinâmica é movida pela escassez, sem perguntar-se pelo motivo dessa escassez. Outra solução seria na perspectiva da lógica da recepção que se organiza pelo comum coletivo público, não se movendo pela escassez, mas pelo planejamento para que não aconteçam situações de falta de insumos necessários para tratar. A situação caótica de crise sanitária e ambiental obriga a repensar a sociedade não na lógica da apropriação, centrada no indivíduo, mas na pers-
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