185 Constitucionalismo e democracia do na identidade de vontade entre o corpo do povo e o corpo dos representantes, não há necessidade de deliberação ou de debate para construir a vontade geral: ela está no corpo da Nação, e basta, já que há identidade e que o Rei ou os representantes expressam-se para que as suas vontades tenham a qualidade de lei. Por outro lado, sendo os dois corpos separados, nenhum deles poderá possuir exclusivamente a vontade geral, destaca-se, então, a deliberação como princípio constitutivo do modo de produção da lei. Este princípio nos leva a voltar a uma propriedade muitas vezes esquecida da constituição, a de ser um texto composto de palavras. Um jurista tende, naturalmente, a pensar que uma constituição é composta de normas, que ela consubstancia um direito “puro”, não sendo, portanto, necessário saber o que a constituição determina ou proíbe: basta ler a constituição, e se preciso for, os seus trabalhos preparatórios, para descobrir a norma, o princípio, a regra que nela consta. Neste regime, uma instituição fala, de autoridade, e o povo aclama. De modo inverso, ao colocar a deliberação como princípio do seu funcionamento, o regime concorrencial de enunciação da vontade geral assume a polissemia das palavras do direito, de forma a abrir espaço para uma política jurídica da argumentação destinada a determinar e construir a normatividade destas palavras. Haja vista que a norma não está nas normas, sendo estas, ademais, polissêmicas, mostra-se imprescindível debater para decidir dentre todas as possíveis significações que determinada palavra pode ter num dado momento, aquela que será escolhida para “fazer norma”. Por meio deste funcionamento deliberativo, o regime concorrencial de produção da vontade geral passa a ter duas características “democráticas” – ou que se podem qualificar de “democráticas”. A primeira é que a norma não pode ser transformada em “fetiche”, nem sequer em verdade intangível; decorre ela, após deliberação, de uma escolha entre vários significados concorrentes. A norma não deixa de ser objeto de discussão, podendo mudar no caso de novas deliberações “fazerem jus” a significados que não haviam sido examinados naquela ocasião anterior. Isto é, o que os juristas chamam, pudicamente, de reviravolta jurisprudencial! A essa primeira característica, que faz do regime concorrencial um regime constantemente aberto para a sociedade, cumpre acrescentar o necessário reconhecimento dos direitos fundamentais. Tendo em vista que a vontade geral não é emitida por uma autoridade que a possuiria
RkJQdWJsaXNoZXIy MjEzNzYz